Documentos secretos da CIA – o império age na sombra

Por DJALBA lIMA

TRANSCRIÇÃO DO PODCAST

Enquanto o mundo assistia à construção do Muro de Berlim, aos discursos inflamados de Kennedy e Khrushchev e ao risco iminente de uma guerra nuclear, havia outro palco de batalha – invisível, mas decisivo. Era nos bastidores da diplomacia, nos corredores da Casa Branca e nas salas protegidas da CIA que o verdadeiro jogo de poder se desenrolava. E o Brasil foi peça importante nesse tabuleiro.

Graças a documentos desclassificados e analisados pelo National Security Archive, agora podemos enxergar o lado invisível da intervenção norte-americana em países considerados estratégicos. Entre 1961 e 1974, a CIA operou com carta branca para intervir, manipular, cooptar e, se preciso, derrubar governos. Tudo com a bênção presidencial.

Como funcionava a engrenagem do poder oculto?
Na teoria, os Estados Unidos defendiam a democracia. Na prática, a defesa do “mundo livre” passava por derrubar governos eleitos e apoiar ditaduras alinhadas aos interesses norte-americanos.

Cada operação secreta da CIA — especialmente as mais arriscadas — precisava da aprovação de um comitê conhecido como Special Group 5412, composto por membros do Conselho de Segurança Nacional e do Departamento de Estado e pelo diretor da CIA. Mas nos casos mais sensíveis, era o próprio presidente quem tomava a decisão final. Kennedy, Johnson e Nixon participaram diretamente de reuniões em que se decidiram operações clandestinas, como sabotagens e campanhas de desinformação.

Essas decisões, durante décadas, permaneceram enterradas sob o selo de “segredo de Estado”. Só que o tempo — e a política — abriram essas gavetas. Em janeiro de 2025, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva determinando a desclassificação completa dos arquivos relacionados aos assassinatos de John Kennedy, Robert Kennedy e Martin Luther King Jr.

No rastro dessa liberação, vieram à tona milhares de documentos da CIA. Entre eles, relatórios sobre Brasil, Cuba, Chile, África e outras zonas de influência direta dos Estados Unidos durante a Guerra Fria. São documentos que não só revelam o modus operandi da agência, mas escancaram a mecânica do poder nas sombras.

Este episódio de Relatos – A Estação da História foi construído com base nesses documentos — muitos dos quais só agora se tornaram públicos. Portanto, vamos abrir o baú dos fantasmas da Guerra Fria.

O dirigente cubano Fidel Castro, o maior espinho na garganta da CIA, foi alvo de dezenas de operações clandestinas. Alguns trechos dos documentos são quase cômicos — não fosse o contexto sombrio. Um dos planos da CIA para minar a imagem pública de Fidel Castro seria contaminar suas roupas ou objetos pessoais com sais químicos depilatórios, para fazer sua icônica barba cair. A ideia era atingir sua virilidade simbólica perante os cubanos e enfraquecer seu prestígio — pela estética.

Houve também planos para infiltrar drogas alucinógenas em seus estúdios de rádio e sabotar seus discursos públicos. Em outro caso, cogitou-se oferecer alguns “presentes” a Fidel, com a ajuda de terceiros infiltrados. Entre esses “mimos” estavam charutos explosivos e um traje de mergulho contaminado com esporos fatais.

Nenhum desses planos funcionou. O dirigente cubano sobreviveu a mais de 600 tentativas de assassinato, segundo contagens extraoficiais, e tornou-se uma lenda da resistência anti-imperialista.

Em abril de 1961, a CIA organizou uma força composta por exilados cubanos anticastristas, treinados em segredo, para invadir Cuba e derrubar o governo de Fidel Castro. O plano previa um levante popular em apoio aos invasores, mas nada disso aconteceu. O local escolhido foi a Baía dos Porcos, na costa sul da ilha.

O desembarque foi um fracasso retumbante: os invasores foram rapidamente cercados e derrotados pelas forças cubanas. O apoio aéreo prometido pelos Estados Unidos foi cancelado de última hora, e os rebeldes ficaram isolados.

O resultado: mais de 1.100 homens capturados, incluindo agentes ligados à CIA. O fracasso foi um vexame internacional para o recém-empossado presidente John Kennedy, que teve de admitir, com reservas, a responsabilidade indireta dos Estados Unidos na operação.

Mas o que fazer com os prisioneiros? É nesse momento de tensão que entra em cena o Brasil. Documentos do National Security Archive revelam que o presidente João Goulart foi usado por Kennedy como intermediário secreto para enviar um recado a Fidel Castro: os EUA não tentariam nova invasão se os prisioneiros fossem poupados e devolvidos com segurança.

O gesto foi bem-sucedido. Em dezembro de 1962, após longas negociações mediadas por terceiros — incluindo o advogado americano James Donovan e representantes de países neutros —, os prisioneiros foram libertados em troca de alimentos e remédios, avaliados em cerca de 53 milhões de dólares.

Foi uma derrota militar para os Estados Unidos, mas uma saída diplomática relativamente honrosa, que teve no Brasil uma peça-chave dos bastidores.

Como John Kennedy retribuiu a mãozinha de João Goulart, o Jango? A diplomacia não costuma ter memória — apenas interesses.

Apesar do gesto de boa vontade de Jango, servindo como ponte secreta entre Washington e Havana, o governo Kennedy não demorou a enxergar o presidente brasileiro como uma ameaça. Preocupado com as reformas sociais propostas pelo presidente brasileiro e com sua aproximação com países do bloco socialista, Kennedy determinou uma mudança na estratégia dos EUA em relação ao Brasil.

Créditos internacionais foram bloqueados, empréstimos foram dificultados, e o país acabou, na prática, isolado economicamente. Ao mesmo tempo, a embaixada dos Estados Unidos passou a estreitar laços com líderes militares, empresários conservadores e setores da imprensa alinhados à direita. Essa aproximação ajudou a fortalecer os alicerces da conspiração que culminaria no golpe de 1964.

Em nome do combate ao “perigo vermelho”, Washington abandonou a democracia que dissera defender – inclusive aquela que, pouco antes, lhe havia estendido a mão.

O que aconteceu no Brasil em 1964 não ficou no Brasil. A engenharia do golpe – com propaganda, bloqueios econômicos, financiamento de aliados internos e apoio externo silencioso – virou manual de instruções. Para a CIA, o Brasil foi um projeto-piloto bem-sucedido. E o próximo laboratório seria o Chile. Ou seja, do Brasil para o Chile, a exportação do golpe.

Setembro de 1970. O povo chileno vai às urnas e elege, democraticamente, um presidente socialista: Salvador Allende. Em Washington, o alerta foi imediato. Para Richard Nixon e Henry Kissinger, a vitória de Allende era “inaceitável”. Pouco depois da eleição, Nixon ordena à CIA:

“Faça-o cair. Ainda que custe 10 milhões de dólares. E que o Congresso nunca saiba.”

Está registrado. Memorandos, atas e relatórios revelam: o objetivo era impedir que o Chile se tornasse uma “nova Cuba” no continente. A CIA financia tudo: greves e sabotagens econômicas; compra de parlamentares; e campanhas para despertar o medo.

Em 1973, o cerco se fecha. Tanques cercam o Palácio de La Moneda. Helicópteros sobrevoam Santiago. E Allende, cercado, se recusa a fugir. Com um fuzil presenteado por Fidel Castro, ele resiste até o fim.

Allende morre — e nasce a ditadura de Augusto Pinochet.

O Chile, que foi um embrionário laboratório da democracia popular, torna-se campo de testes da repressão neoliberal.

Os documentos desclassificados, publicados pelo National Security Archive, revelam que o Brasil desempenhou um papel ativo na conspiração para derrubar Salvador Allende, em estreita colaboração com os Estados Unidos. Essa cooperação foi formalizada durante uma reunião secreta entre o presidente brasileiro Emílio Garrastazu Médici e o presidente norte-americano Richard Nixon, em 9 de dezembro de 1971, no Salão Oval da Casa Branca.

Durante esse encontro, Médici afirmou que Allende seria deposto “pelas mesmas razões que Goulart fora derrubado no Brasil”, e deixou claro que o Brasil estava trabalhando nesse sentido. Nixon, por sua vez, enfatizou a importância de uma colaboração estreita entre os dois países nesse campo e ofereceu “ajuda discreta” e recursos financeiros para as operações brasileiras contra o governo de Allende.

Os dois líderes também concordaram em estabelecer um canal secreto de comunicação para coordenar seus esforços, nomeando o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Mário Gibson Barboza, e o então conselheiro de segurança nacional dos EUA, Henry Kissinger, como intermediários.

Os documentos da CIA revelam ainda uma participação ativa do Brasil na Operação Condor, sinistro instrumento de repressão política e terror usado pelas ditaduras de direita do Cone Sul com o apoio dos Estados Unidos. Em 1976, o Brasil concordou em fornecer equipamentos para a “Condortel”, a rede de comunicações utilizada pelas agências de inteligência dos países envolvidos. Essa rede usava tanto voz quanto teletipo para as comunicações entre os membros.

O equipamento fornecido pelo Brasil incluía máquinas de cifra CX-52, de origem suíça, fabricadas pela empresa Crypto AG. Essas máquinas eram semelhantes a antigas caixas registradoras, com teclas, alavancas deslizantes e um disco manual operado após cada entrada.

O fornecimento desses dispositivos permitiu que os países membros da Operação Condor compartilhassem informações de forma segura e coordenassem ações de repressão contra opositores políticos.

Um aspecto intrigante dessa colaboração é que a Crypto AG era secretamente controlada pela CIA e pela agência de inteligência alemã BND. Isso significava que, ao fornecer os equipamentos de criptografia para a Condortel, o Brasil permitiu, inadvertidamente, que os Estados Unidos tivessem acesso às comunicações internas da Operação Condor. Essa operação de espionagem, conhecida como “Minerva” ou “Rubicon”, permitiu que a CIA monitorasse as atividades repressivas dos regimes militares sul-americanos.

Além de Fidel Castro, um caso significativo de atividade ilegal da CIA envolve o ex-dirigente congolês Patrice Lumumba. Documentos desclassificados indicam que durante o governo de Eisenhower houve discussões no Conselho de Segurança Nacional sobre a eliminação de Lumumba, líder do Congo Kinshassa, considerado uma ameaça comunista. Embora o plano não tenha sido executado diretamente pela CIA, a agência teve conhecimento e envolvimento indireto nos eventos que levaram à morte do ex-líder congolês em 1961.

Além disso, durante a presidência de Nixon, houve tentativas de encobrir informações relacionadas a operações anteriores da CIA, incluindo aquelas associadas à invasão da Baía dos Porcos e possíveis conexões com o assassinato de John Kennedy. Gravações da Casa Branca mostram Nixon pressionando o diretor da Cia, Richard Helms, sobre esses assuntos, sugerindo que revelações poderiam prejudicar a agência.

Esses casos ilustram a complexidade e a profundidade das operações clandestinas durante a Guerra Fria, muitas vezes com o conhecimento ou envolvimento direto dos presidentes dos Estados Unidos.

República Centro-Africana. Um país governado por um excêntrico presidente chamado Jean-Bedel Bokassa, que chegou a se autoproclamar imperador.

Em 1971, a CIA propôs um “gesto de boa vontade”: um avião executivo da Lockheed como presente.

Objetivo? Garantir que Bokassa se mantivesse fiel ao Ocidente e longe da influência soviética.

Um mimo? Não. Um suborno diplomático, autorizado no alto escalão da Casa Branca.

Você identifica alguma semelhança entre esse presente para Bokassa e o Boeing 747 doado pelo Catar a Donald Trump? Não seja maledicente…

A história oficial da Guerra Fria foi escrita por diplomatas, generais e presidentes.
Mas existe uma outra história — a que se escreveu nos arquivos secretos, nas reuniões clandestinas e nas operações não assumidas.

O Brasil foi apenas uma das vítimas dessa lógica imperial de controle.

Os documentos desclassificados nos mostram algo perturbador: nem sempre a democracia morre com tanques. Às vezes, ela se desfaz em silêncio, nos bastidores de uma sala de reuniões.

CRÉDITOS:


Relatos – A Estação da História

• Texto, roteiro e edição de áudio: Djalba Lima

• Efeitos sonoros: Free SFX.co.uk

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djalba.lima@gmail.com Escrito por:

2 Comentários

  1. Luiz de Aquino Alves Neto
    junho 4, 2025
    Responder

    Sempre se soube que o golpe de 1964 foi orquestrado pelos EUA com o apoio de multinacionais e de empresários, políticos e veículos de comunicação brasileiros – maus brasileiros, sobretudo militares de altas patentes. Por 32 anos, fomos asfixiados pelo terrorismo de Estado. Ultimamente, muitos documentos de órgãos oficiais norte-americanos vinham revelando, aos poucos, os segredos antes inconfessáveis. Agora, essa avalanche de informações que envergonha a ala militar traidora da pátria, juntamente com empresários da indústria e das comunicações que, *in fine*, são responsáveis pelas perseguições, prisões, torturas e mortes que marcam essas páginas tristes da nossa História.

  2. Patrícia
    junho 6, 2025
    Responder

    “Houve também planos para infiltrar drogas alucinógenas em seus estúdios de rádio e sabotar seus discursos públicos”, fora as inúmeras tentativas de assassinato, e aqueles realmente executados. Incrível como os Estados Unidos sempre manipularam os fatos no seu “quintal” na América Latina.

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