O jogo sujo do poder: a verdade por trás do golpe de 64

O embaixador Lincoln Gordon conversa com o presidente João Goulart

TRANSCRIÇÃO DO PODCAST

A criação artificial de crises é uma estratégia poderosa e perigosa, capaz de derrubar governos, alterar rumo de nações e gerar consequências imprevisíveis. O processo segue uma técnica refinada, embora nefasta. No episódio de hoje de Relatos – A Estação da História, apresentaremos um caso real de fabricação de crise. Vamos lá!

Quando assumiu a presidência da República, em 8 de setembro de 1961, João Goulart, o Jango, encontrou um Brasil polarizado entre esquerda e direita – e em crise econômica, com inflação alta, déficit fiscal elevado e endividamento público excessivo. Havia uma crise, sim, e os fabricantes do caos só tiveram o trabalho de exacerbar seu contexto e suas consequências.

Jango tinha um projeto ambicioso para o Brasil: as Reformas de Base, como a reforma agrária – que causava repulsa nos latifundiários. Ele pretendia também nacionalizar setores estratégicos da economia e limitar a remessa de lucros que as multinacionais faziam para suas matrizes, geralmente localizadas nos Estados Unidos. Muitos serviços públicos, como fornecimento de energia e telecomunicações, eram dominados por empresas norte-americanas – e a remessa de lucros sugava a economia popular.

O problema é que Jango não conseguiu engajar a esquerda em seu projeto e fez uma costura frágil com a área militar, que o via com desconfiança. Uma parte considerável dos militares flertava com ideias golpistas, porque tinha propostas para governar o Brasil, mas não os votos necessários. O candidato da preferência dos militares – Juarez Távora – havia perdido as eleições de 1955 para Juscelino Kubitschek. Em 1960, havia um candidato militar, o marechal Teixeira Lott, que não era o queridinho na caserna e perdeu a eleição para Jânio Quadros.
Em meio a esse quadro adverso, a esquerda queria mais: considerava as reformas de Jango insuficientes para a chamada revolução popular. O terreno era fértil para a crise.

No meio de tudo isso, duas forças poderosas identificaram uma convergência de interesses: os militares queriam governar; os Estados Unidos queriam manter seu domínio sobre a América Latina no mundo dividido pela Guerra Fria.
A política externa de Washington na época era guiada pela Teoria do Dominó. A lógica era simples: se um país caísse para o socialismo, seus vizinhos cairiam juntos. A queda do dominó havia sido puxada por Cuba com a revolução comandada por Fidel Castro em 1959. Nesse jogo, havia o risco de o Brasil ser a pedra da vez.

O Brasil tinha um peso significativo: com quase 80 milhões de habitantes na época e uma economia em expansão, poderia influenciar toda a América Latina. Para Washington, a prioridade era evitar que o Brasil trilhasse um caminho alternativo aos interesses geopolíticos da Casa Branca.
Havia muitas evidências de que o governo norte-americano não estava nada satisfeito com Jango. Em documento de 1962, o Departamento de Estado norte-americano já apontava o então presidente brasileiro como um risco à estabilidade na região. Relatório da CIA o descreveu como “um populista cujas reformas ameaçam a ordem econômica e política do país”. Era o suficiente para que Washington o colocasse na mira.

Mas como fazer isso? A resposta veio em três frentes:

  • Campanhas de propaganda contra Jango e seu governo, financiadas por Washington.
  • Apoio direto a forças militares brasileiras que viam Jango com desconfiança.
  • E um boicote econômico para agravar a crise política do país.

Boicote econômico? Sim, sem dúvida. O governo dos Estados Unidos, sob a presidência de John F. Kennedy e, posteriormente, de Lyndon B. Johnson, introduziu uma série de restrições econômicas contra o Brasil durante o governo de Jango, como a suspensão de créditos e financiamentos, inclusive do Fundo Monetário Internacional e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Isso agravou a crise cambial e gerou escassez de dólares no país.
Houve também a interrupção da ajuda da Aliança para o Progresso. O Brasil foi excluído desse programa de assistência econômica e social dos Estados Unidos para a América Latina, o que dificultou investimentos em infraestrutura e programas sociais.
Além disso, o governo dos Estados Unidos pressionou bancos privados para que evitassem conceder novos empréstimos ao Brasil.
Completou-se o isolamento financeiro do país. Portanto, o boicote econômico dos Estados Unidos, entre 1963 e 1964, não foi apenas um fator colateral na crise brasileira, mas uma estratégia deliberada para desestabilizar o governo João Goulart e criar um ambiente propício para sua derrubada.

Com o aprofundamento da estratégia, os norte-americanos despejaram milhões de dólares em instituições que ajudaram a desestabilizar o governo Jango, como o Ipes (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais), a Adep (Ação Democrática Parlamentar) e o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Eram entidades com a mesma finalidade: fortalecer um movimento de extrema-direita para se contrapor ao governo brasileiro. Como vocês poderão ver em seguida, essas entidades de “democráticas” só tinham o nome.

O Ibad havia sido fundado em 1959 com o objetivo de combater uma suposta infiltração comunista na sociedade brasileira. Na eleição de 1962, destinou milhões de dólares às campanhas eleitorais dos candidatos contrários às Reformas de Base e ao governo Jango. As campanhas eram pagas em malas de dinheiro.

O bloco da Adep, financiado pelo Ibad, chegou a ter 150 deputados na Câmara. O Ibad financiou também campanhas de governadores de estados considerados importantes para o plano golpista.
A situação tornou-se acintosa e, em 1963, a Câmara dos Deputados se viu obrigada a criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a lista de candidatos que haviam recebido apoio financeiro do Ibad e do Ipes. Por trás do IPES estava o general Golbery do Couto e Silva, que se tornaria ministro do governo militar.
O presidente da CPI era o deputado Ulysses Guimarães. Um dos integrantes mais ativos dessa comissão era o então deputado Rubens Paiva, cujo mandato foi cassado logo após o golpe militar, em 9 de abril de 1964. Rubens Paiva é personagem do filme Ainda estou aqui.

A CPI do Ibad tomou centenas de depoimentos e apurou denúncias de doações ilegais. Antes do início da investigação, parte da documentação do Ibad foi queimada, mas o que restou permitiu constatar que seu financiamento tinha como origem contribuições de grandes empresas norte-americanas – aqueles dólares referidos um pouco antes, que ajudaram a eleger 150 deputados e governadores de estados-chave.

Embaixada, o centro da conspiração
A embaixada dos Estados Unidos no Brasil tornou-se o centro das operações políticas que visavam desestabilizar o governo brasileiro. A rede de conspiradores tinha dois personagens centrais do lado norte-americano: Lincoln Gordon, o então embaixador no Brasil, e Vernon Walters, o adido militar. Ambos desempenharam papeis fundamentais na construção da ponte entre Washington e os conspiradores brasileiros, garantindo que o golpe fosse articulado e executado conforme os interesses norte-americanos.

Em documentos secretos que posteriormente se tornaram públicos, Gordon delineou um plano de ação que incluía a garantia de suporte militar norte-americano para a deposição de João Goulart. O embaixador propôs uma sinalização clara de que os Estados Unidos interviriam, caso necessário, para assegurar o sucesso do golpe.
Em telegrama no fim de março de 1964, Gordon alertou Washington sobre a necessidade de agir rapidamente, afirmando que “a oportunidade de mudança de regime pode não se repetir”.

Enquanto isso, o adido militar Vernon Walters atuava como elo entre Washington e líderes militares brasileiros. Walters, fluente em português, desfrutava de acesso direto a altas lideranças militares, incluindo o general Castelo Branco, um dos principais articuladores do golpe. Em memorando ao Pentágono, Walters descreveu Castelo Branco como “um homem confiável e alinhado com os interesses ocidentais”.

Além de ser um facilitador, Walters também atuava como uma fonte de inteligência para Washington. Ele fornecia relatórios detalhados sobre os movimentos de Goulart e suas bases de apoio, permitindo que os EUA ajustassem suas estratégias em tempo real. Sua função como informante foi crucial para o sucesso do golpe.

O dia do golpe: a conexão Washington-Brasília
Em 31 de março de 1964, quando as tropas começaram a se mobilizar, Gordon e Walters entraram em contato com Washington para confirmar que o plano estava em andamento. Gordon enviou um telegrama ao Departamento de Estado afirmando que “os militares estão no controle, e Goulart está enfraquecido”. A rápida comunicação garantiu que a Operação Brother Sam pudesse ser ativada se necessário, embora, como se sabe, a deposição de Goulart ocorreu sem resistência militar.

Na madrugada de 2 de abril de 1964, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, realizou uma sessão para declarar que Jango havia deixado o governo – uma comunicação falsa, porque o presidente não havia renunciado, nem se ausentado do país.

“Comunico ao Congresso Nacional que o sr. João Goulart deixou o governo da República.”

Mesmo com a informação do então chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, de que Jango havia decidido viajar para o Rio Grande do Sul, em face do cerco de tropas golpistas a Brasília, Auro declarou a vacância do cargo de presidente da República.

“O presidente da República deixou a sede do governo, abandonou o governo. Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República.”

O golpe estava consumado. Sem condições de liderar a resistência, Jango foi com a família para Montevidéu, no Uruguai. Posteriormente, mudou-se para Mercedes, na Argentina, onde morreu em 6 de dezembro de 1976.

Na madrugada de 2 de abril de 1964, os presidentes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal deram posse na presidência da República, interinamente, ao presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. Um presidente figurativo, porque decisões como cassações de mandatos e prisões eram tomadas por um comando revolucionário. O Brasil mergulhou numa longa noite de 21 anos.

“Esta noite, para mim, não é ainda a grande noite que o Brasil espera. Não é ainda a grande noite que o povo pede, porque a noite que o povo pede é a noite da sua redenção. E esta não é ainda a noite da redenção das massas espoliadas do Brasil. Nós estamos esperando que essa noite chegue.”

Fala do deputado Francisco Julião na sessão da noite de 31 de março de 1964. Líder político das Ligas Camponesas, em Pernambuco, Julião integrou uma longa lista de brasileiros que tiveram mandatos cassados e direitos políticos suspensos por um comando revolucionário.

E, então, o que você pensa das técnicas de fabricar crises? As técnicas usadas hoje são mais refinadas? Entre em relatos.blog.br e comente. Se tiver gostado desse episódio, compartilhe-o e veja nosso próximo podcast: por dentro da Operação Brother Sam. Parece nome de filme de ficção, mas é verdade. Até lá! Obrigado!


CRÉDITOS:

• Texto, roteiro e edição de áudio: Djalba Lima

• Efeitos sonoros: FreeSFX.co.uk

• Áudios de personagens da história: arquivos do Senado e da Câmara dos Deputados

• Fotos: Arquivo Nacional


djalba.lima@gmail.com Escrito por:

6 Comentários

  1. Teresa Cardoso
    março 12, 2025
    Responder

    Muito bem apurado e muito bem editado. Espero que as novas gerações percebam a importância desses relatos.

  2. Hyago Sena Cardoso
    março 13, 2025
    Responder

    É incrível como na história da humanidade o EUA sempre quer se sobressair e intervir em absolutamente tudo. Muito interessante o texto como e a forma como é colocado, com linguagem simples e objetiva.

  3. Rita de Cássia
    março 14, 2025
    Responder

    Texto muito bom para relembrar o golpe de 1964 e ficarmos atentos com alguns acontecimentos a partir de 2013. no Brasil.

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