Em março de 1976, Buenos Aires fervilhava em expectativa. Faltavam poucos dias para o golpe militar que mergulharia a Argentina em uma das ditaduras mais violentas do Cone Sul. A cidade, tomada por patrulhas, checkpoints e uma atmosfera de medo, era também palco de um encontro musical inesquecível: Vinícius de Moraes, Toquinho e músicos brasileiros se apresentavam para plateias lotadas, levando poesia e bossa nova em meio à escuridão política que se avizinhava.
Entre esses músicos estava Francisco Tenório Cerqueira Júnior, mais conhecido como Tenório Júnior – um pianista carioca de talento fulgurante, nascido em 4 de julho de 1940. Filho das noites de samba-jazz dos anos 60, companheiro de estúdio de Leny Andrade, Vitor Assis Brasil e tantos outros, Tenório não era apenas um músico promissor. Era também estudante de medicina, alguém que conciliava partituras e bisturis, buscando expandir horizontes entre a arte e a ciência.
Naquela noite de 18 de março de 1976, hospedado no Hotel Normandie, na avenida Corrientes, Tenório deixou um bilhete rápido: “vou comprar um remédio e comer um sanduíche, volto logo”. Jamais voltou.
O Brasil no piano, a Argentina na mira
O desaparecimento do pianista se deu no coração de um sistema repressivo que já se consolidava. A Argentina estava às vésperas de um golpe de Estado que instauraria a ditadura de Jorge Rafael Videla e intensificaria a Operação Condor, pacto de colaboração entre os regimes militares da América do Sul para vigiar, prender, torturar e eliminar opositores.
Para os militares, bastava pouco: cabelos longos, barba, roupas alternativas ou simplesmente estar na hora errada no lugar errado. Muitos foram confundidos com militantes e arrastados para os porões da repressão. Testemunhos posteriores, como o do ex-sargento argentino Claudio Vallejos, indicam que Tenório pode ter sido levado à Escola de Mecânica da Armada (ESMA), um dos mais brutais centros clandestinos de tortura.
Tenório jamais se envolvera em militância política. Seu crime foi a aparência, talvez o sotaque estrangeiro, a coincidência de atravessar uma cidade onde a violência estatal já não fazia distinções claras.
A sombra do silêncio
Durante décadas, apenas rumores ecoavam. Alguns diziam que ele teria sido preso por engano; outros que fora executado logo após a detenção. Para Vinícius e Toquinho, restou o vazio de uma cadeira no palco e a dor de explicar ao mundo o desaparecimento de um jovem talento brasileiro.
O caso Tenório Júnior tornou-se um símbolo da tragédia compartilhada pelos povos latino-americanos nos anos 70: a música calada pelo fuzil, a arte dissolvida na barbárie do autoritarismo. Sua história ecoava como denúncia da violência cega de um sistema que, para perpetuar-se, devorava até os inocentes.
Quase cinquenta anos depois, a resposta
Foi somente em 13 de setembro de 2025 que a verdade veio à tona. A Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), junto com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, anunciou a identificação dos restos mortais do pianista.
O corpo havia sido encontrado em 20 de março de 1976, em um terreno baldio na região de Tigre, periferia de Buenos Aires. Apresentava múltiplos disparos de arma de fogo. Enterrado como indigente no cemitério de Benavídez, permaneceu anônimo por quase meio século, até ser reconhecido graças a técnicas modernas de análise e à comparação de impressões digitais.
A revelação trouxe algum consolo à família e aos amigos, mas também reabriu feridas. O que o levou a ser executado? Foi confundido com outro? Quem deu a ordem? Essas perguntas ainda permanecem sem resposta.
Um legado de memória
A vida de Tenório Júnior, brutalmente interrompida, tornou-se símbolo. Documentários, pesquisas e até uma animação de Fernando Trueba e Javier Mariscal — Dispararon al Pianista (They Shot the Piano Player) — reconstruíram sua trajetória para as novas gerações.
Mais que uma tragédia pessoal, sua história é um alerta coletivo: nenhuma ditadura é seletiva em sua violência. Artistas, jornalistas, estudantes, trabalhadores – todos se tornam vulneráveis quando a barbárie se institucionaliza.
Hoje, ao lembrarmos Tenório, lembramos também de milhares de outros desaparecidos políticos da América Latina. Cada nota que ele não pôde tocar é um silêncio que nos obriga a escutar as lições da história: a memória é resistência, a verdade é justiça, e a música é liberdade.

É uma história comovente que ilustra um pouquinho o que é a Ditadura. Tenorinho no auge dos seus 35 anos, desce do hotel pra comprar remédios e cigarros e nunca mais voltou. É inconcebível nos dias de hoje, nos depararmos com essa horda fascista em nosso país que estimula a volta do autoritarismo. Cá pra nós, não dá vontade de tacar um piano na cabeça dessa gente perversa?
Sim, foi um ato de extrema violência, praticada por covardes escudados em fardas e sob a tutela da intenção do golpe de Videla. Tenório Júnior fora chamado por Vinícius para estar com ele e Toquinho numa _tournée_ que se viu frustrada. Anos antes, o segundo ditador, Costa e Silva, excluiu Vinícius da carreira diplomática com uma frase estúpida e cavalar, bem ao modo do tirano: “Demitam esse vagabundo”. Mal sabia o marechal que, para a História, vagabundos seriam aqueles que, subvencionados a muitos dólares, cometeram o golpe para simplesmente atender aos desejos do colonizador do Norte – o governo dos Estados Unidos..
E, para minha decepção e tristeza, vi um vídeo em que o genial violonista e compositor Toquinho refere-se aos “anos de chumbo” como “um tempo de segurança e de liberdade, eu era muito feliz”.