Avanço da extrema direita: o que está por trás dos riscos à democracia hoje

Samara – Neste episódio de Relatos A Estação da História, vamos analisar velhos fantasmas que retornam sob novas máscaras. Falamos dos riscos que o avanço da extrema direita representa para a democracia e o processo civilizatório. Mas o que é uma pessoa de direita?

Djalba – O direitista radical é movido pelo medo – pelo medo que ele desperta nos outros, e pelo medo que sente por acreditar, às vezes de forma paranoica, que seus privilégios estão em risco. Vê inimigos em toda parte, idolatra autoridade, transforma fé em arma política e não aceita o contraditório. Para ele, o mundo se divide entre o bem e o mal – e quem discordar deve ser silenciado.

Samara – Mas há também o direitista moderado…

Djalba – Sim, o direitista moderado prefere a prudência. Valoriza a liberdade econômica, acredita em instituições e rejeita soluções autoritárias. Ele pode ser conservador nos costumes, mas respeita o jogo democrático. Busca reformas – não rupturas.

Samara – Essa figura não estaria em extinção?

Djalba – O problema é que, numa sociedade em radicalização, até esse direitista moderado corre o risco de ser engolido – não por mudar de convicção, mas por medo de parecer fraco diante da fúria dos extremos. E assim, pouco a pouco, o espaço do diálogo vai sendo tomado pelo grito. E a democracia, pela submissão ao autoritarismo disfarçado de convicção.

Samara – Pode-se dizer que o direitista tem uma postura política egoísta?

Djalba – Sim, podemos concluir isso. A lógica da direita contemporânea – seja a de viés ultraliberal, seja a de viés autoritário – rejeita responsabilidades coletivas. Em nome da “liberdade individual”, abomina medidas que exigem solidariedade, como impostos progressivos, políticas afirmativas, combate à fome e proteção ambiental. A regra é clara: “o problema do outro não é meu problema”.

Samara – Mas como uma posição assim tão retrógrada encontra acolhida entre jovens pobres, que estão aderindo a ideologias conservadoras e antidemocráticas?

Djalba – O Brasil já vive há bastante tempo nos chamados “pisos pegajosos”, como os especialistas definem os obstáculos estruturais que impedem a ascensão social e econômica das camadas mais pobres. Segundo a OCDE, a maioria das pessoas permanece no mesmo nível socioeconômico de seus pais ou pioram de status. A desigualdade brasileira é tão extrema que uma criança nascida em família de baixa renda, aqui, levaria nove gerações para alcançar a renda média nacional. Ou seja, quem nasce pobre morre pobre, conforme essa projeção. Exceções existem, mas são poucas.

Samara – Esse dado é realmente chocante, especialmente quando comparado com países desenvolvidos, onde esse parâmetro é, em média, de cinco gerações para a mesma finalidade. É como se tivéssemos no Brasil um “elevador social” quebrado.

Djalba – E sabe o que é também muito preocupante? O Nobel de Economia James Robinson tem alertado que a desigualdade não é apenas um problema econômico – ela está corroendo a própria base da democracia. Para ele, é muito difícil ter uma sociedade culturalmente democrática quando há níveis enormes de desigualdade. Robinson é coautor do livro Por que as Nações Fracassam.

Samara – Hum… e como essa erosão democrática está acontecendo na prática?

Djalba – Bem, quando as pessoas perdem a esperança de melhorar de vida, começam a questionar o próprio sistema. E aí entra um novo elemento que está piorando tudo: o fim do emprego tradicional como o conhecemos.

Samara – Ah, você está falando da tal gig economy, não é? Esse modelo onde todo mundo vira meio que freelancer?

Djalba – Exatamente! É um sistema em que o trabalho formal está desaparecendo, substituído por “bicos” – como motoristas de aplicativos, entregadores e vendedores online. E o mais perverso é que isso está sendo vendido como “empreendedorismo”.

Samara – Nossa! E o mais irônico é que muitas dessas pessoas acabam defendendo justamente as políticas que as mantêm nessa situação precária.

Djalba – É que a extrema direita conseguiu criar uma narrativa muito eficiente. Seus líderes transformaram a precarização em uma história de superação individual – sabe aquela ideia do “se você se esforçar, vai vencer”? E se não vencer, bem, a culpa é sua.

Samara – E isso está criando uma espécie de… como posso dizer… soldados ideológicos da própria precarização?

Djalba – EXATAMENTE! É o que alguns estudiosos chamam de “precariado ideológico” – pessoas em situação precária que se tornam defensoras ferrenhas do sistema que as precariza.

Samara – Então ainda há esperança de mudança? Como podemos quebrar esse ciclo?

Djalba – Olha, precisamos de uma abordagem em várias frentes. Primeiro, políticas sérias de combate à desigualdade – não apenas programas assistenciais, mas investimentos massivos em educação, por exemplo. Segundo, regulamentação dessa nova economia digital, sem sufocar a inovação.

Samara – E não podemos esquecer da questão da representatividade política, né? Porque essas pessoas exploradas econômica e politicamente não estão representadas nos espaços de poder, mas vestem a camisa dos vendedores de ilusões.

Djalba – Sem dúvida! Percebe-se que a crise não é apenas econômica e institucional. Há também uma crise de narrativas. Na tentativa de explicar isso melhor, vamos recorrer a uma definição do escritor e mitólogo norte-americano Joseph Campbel. Para ele, mitos são estruturas simbólicas que dão sentido à existência humana, respondendo a anseios universais por identidade, pertencimento e transcendência. A ascensão da direita radical indica que, na ausência de mitos democráticos inspiradores, o imaginário popular é colonizado por narrativas autoritárias.

Samara – Hum… Você se refere ao mito do “salvador da pátria”, não é?

Djalba – EXATAMENTE! Campbell descreve o “monomito” – um padrão narrativo presente em todas as culturas, em que um herói enfrenta o caos, derrota os monstros e restaura a ordem. Líderes populistas se apropriam dessa estrutura para se apresentar como “heróis trágicos”: Trump como o “empreendedor outsider” que lutaria contra o “Estado profundo”; Bolsonaro como o “mito” que “libertaria” o Brasil do “comunismo”. Noam Chomsky advertiu que “a propaganda é para a democracia o que o porrete é para o Estado totalitário”. Ou seja, onde a violência bruta não é possível, vence-se com manipulação, distorção, medo e mentira. E as redes sociais têm sido o “campo de batalha” para essa empreitada sinistra.

Samara – Por que os mitos autoritários seduzem?

Djalba – Campbell explica que a função do mito é conectar o indivíduo ao Cosmo. Em um mundo fragmentado pela desigualdade e incerteza, veja o que a direita radical “oferece”: • Identidade coletiva simplificada: “Nós, o povo virtuoso” versus “Eles, os corruptos”. • Ritos de pertencimento: bandeiras em comícios; hashtags guerreiras; uniformização estética (bonés vermelhos de Trump, “sequestro” do verde-amarelo por Bolsonaro). • Promessa de renascimento: a ideia de que a nação será “purificada” após o confronto apocalíptico, como no mito de Fênix.

Samara – Com a democracia cansada, cresce o fascínio pelo autoritarismo – sabemos no que dá isso. Como enfrentar a hidra autoritária?

Djalba – A sua imagem é perfeita para a situação: a hidra de Lerna era um monstro mitológico com múltiplas cabeças. Quando uma cabeça era cortada, duas outras cresciam no lugar. Essa é uma característica de problema que, ao ser combatido, parece se replicar ou se fortalecer, tornando a solução mais difícil. Como lembrou Umberto Eco, “o fascismo eterno pode voltar sob os disfarces mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para qualquer uma de suas novas formas – todos os dias, em todas as partes do mundo”. A extrema direita de hoje não precisa de botas nem de tanques. Ela veste paletó, fala em nome de Deus e espalha intolerância com emójis de bandeira. São velhos fantasmas sob novas máscaras, como você disse no início deste podcast. É nosso dever identificar essas manifestações e combatê-las em todos os lugares e em todos os momentos.

Samara – Em termos concretos, o que fazer?

Djalba – Bem, precisamos urgentemente de reformas que de fato reduzam a desigualdade. O economista Martin Sandbu defende, no livro The Economics of Belonging, uma reforma tributária progressiva que aumente a tributação sobre a riqueza e sobre grandes corporações, com a redução dos impostos que afetam negativamente a classe trabalhadora e os pequenos empresários.

Samara – E como podemos envolver mais pessoas nessa discussão? Às vezes parece que estamos falando só para nossa própria bolha.

Djalba – Essa é uma questão fundamental. Precisamos mostrar, com dados concretos, como políticas públicas bem desenhadas beneficiam toda a sociedade. E, principalmente, desconstruir essa falsa dicotomia entre desenvolvimento econômico e proteção social. Precisamos também mostrar que o combate à desigualdade não é uma pauta da esquerda. O capitalismo se torna mais forte com a renda mais bem distribuída. É preciso desideologizar essa questão.

Samara – Então você diria que ainda há esperança para reverter esse cenário?

Djalba – Creio que sim. Há um caminho interessante mostrado por Martin Sandbu no livro citado anteriormente. Trata-se de um conjunto de políticas destinadas a resolver a exclusão econômica e restaurar o senso de pertencimento de todos os cidadãos nas economias nacionais. Sandbu defende, por exemplo, medidas para facilitar a transição para novos empregos por meio de programas robustos de capacitação. Isso ajudaria a reduzir o desespero daqueles que sentem que suas habilidades se tornaram obsoletas com a automação e a globalização.

Samara – E qual é o papel da religião nessa opção pela direita de parcela significativa de brasileiros?

Djalba – As religiões neopentecostais têm ganhado enorme influência nas periferias urbanas e nos corações de quem vive em meio ao caos social. E, não por acaso, elas “oferecem” segurança simbólica, prometem milagres rápidos e respostas simples para um mundo cada vez mais complexo. Nessa lógica, a fé se mistura com política e transforma tudo em guerra espiritual. A disputa de ideias vira batalha entre o “bem” e o “mal”. O resultado? Um terreno fértil para líderes autoritários que se apresentam como ungidos, defensores da moral e da ordem. É assim que valôres como obediência, punição e intolerância vão sendo normalizados. Tudo em nome de Deus. E tudo contra quem pensa diferente. Quando a religião se torna instrumento da política, deixa de ser fé e vira arma. E nas mãos da extrema direita, essa arma costuma ser apontada contra quem é diferente.

Samara – Por que é urgente agir para enfrentar esse cenário?

Djalba – Autor de uma teoria chamada de cliodinâmica, Peter Turchin adverte que sociedades em crise seguem ciclos de colapso quando elites se fecham em seus privilégios, e o povo perde a esperança. A ascensão de Hitler nos anos 1930 e o colapso da União Soviética na década de 1990 mostram que sistemas rígidos, incapazes de se reformar, implodem. A saída está em dois pontos: • Agir antes que a polarização se torne irreversível, como ocorreu na Guerra Civil Americana • Priorizar pactos sociais amplos, como o New Deal de Roosevelt, que salvou o capitalismo ao humanizá-lo.

Samara – Há o risco real de morte da democracia?

Djalba – Provavelmente a democracia não morrerá por um golpe espetacular, mas por um lento sufocamento da esperança. Reverter essa tendência exige coragem para taxar os ricos, ousadia para inovar na política e empatia para escutar até mesmo quem hoje aplaude seus próprios algozes. O tempo é curto, e o desafio é grande, mas a história mostra que sociedades à beira do abismo ainda podem escolher um novo caminho – desde que queiram. A civilização não se sustenta apenas com progresso e tecnologia, mas com empatia, memória e coragem. E toda vez que silenciamos diante da intolerância, é a luz do ser humano que começa a se apagar.

Samara – Se gostou deste episódio, compartilhe. Se quiser comentar, entre em relatos.blog.br e deixe sua opinião. E não perca os próximos episódios.

Texto e roteiro: Djalba Lima. Relatos – A Estação da História.

djalba.lima@gmail.com Escrito por:

6 Comentários

  1. Edson Luiz de Almeida
    maio 15, 2025
    Responder

    Mais uma excelente e necessária análise. A Democracia está mesmo ameaçada pela radicalização ignorante.

  2. Patrícia
    maio 16, 2025
    Responder

    Um dos maiores exemplos práticos desse perfil de extrema direita são os pequenos empreendedores e fazendeiros que estão chorando as pitangas por causa do “tarifaço” do Trump, mas nos mesmos vídeos em que dizem estar “quebrando” reafirmam seu apoio ao presidente, embora com certa “surpresa” e decepção por descobrir que as promessas de campanha que já indicavam que muita gente ia se ferrar, pouco importavam, uma vez que iria ferrar “outros” e não eles.

  3. Parabéns pelos comentários sobre os descaminhos da nossa política. Assinaria em baixo também. Gostei muito da metáfora do “Elevador Social do Brasil” quebrado para a classe baixa. Com a licença humorística, eu como chargista pretendo até trabalhar essa ideia. E lamento ainda convivermos com aqueles (que não são poucos) que insistem em imitar aquela máxima: A BARATA VOTANDO NO CHINELO.

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