O 2 de dezembro, Dia Internacional para a Abolição da Escravatura, foi instituído pela ONU em 1985 para lembrar um marco anterior: a Convenção de 1949 para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem. Era o pós-guerra. O mundo tentava cicatrizar as feridas abertas pelo fascismo, pelos campos de extermínio e pela industrialização da crueldade humana. A comunidade internacional percebia, com atraso, que a abolição jurídica da escravidão – conquistada ao longo do século XIX – não eliminara suas mutações.
A data não celebra um fim; ela denuncia uma permanência. A escravidão não acabou — ela mudou de forma. Hoje, mais de 50 milhões de pessoas vivem em alguma forma de escravidão moderna, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Walk Free Foundation e a ONU. É o maior número já registrado. E essa escravidão assume diferentes rostos:
Trabalho forçado
Exploração em minas, fazendas, fábricas têxteis, construção civil, pesca.
Empresas e cadeias produtivas globais se beneficiam desse tipo de mão de obra invisível. Há casos documentados em todos os continentes — inclusive no Brasil.
Casamentos forçados
Mulheres e meninas dadas em casamento sem consentimento, muitas vezes como forma de pagamento de dívidas, controle social ou tradição violenta.
Tráfico de pessoas
Rede internacional que sequestra, transporta ou compra pessoas com fins de exploração laboral, sexual, militar ou doméstica.
Exploração sexual
Mulheres e crianças forçadas à prostituição, apreendidas por dívidas ilegítimas ou dependência criada por grupos criminosos.
E é justamente este o eixo da Convenção de 1949, lembrada na data de hoje.
Servidão por dívida
Sistema pelo qual trabalhadores jamais conseguem pagar adiantamentos fraudulentos, ficando presos por anos – às vezes por toda a vida – a empregadores. Paquistão, Índia e Sudeste Asiático têm números elevados, mas o fenômeno é global.
Trabalho infantil extremo
Crianças submetidas a condições degradantes, muitas vezes em situações de risco de morte, como mineração de ouro e cobalto.
Por que ainda existe escravidão?
Porque existe vulnerabilidade.
Porque existe desigualdade extrema.
Porque existe demanda econômica.
E porque, como dizia Darcy Ribeiro, o fracasso não está na incapacidade de resolver, mas na estrutura que se dedica a não resolver.
A escravidão moderna prospera onde o Estado falha, onde as instituições são frágeis e onde o lucro vale mais que a vida.
E o Brasil?
O Brasil é referência mundial no modelo de combate ao trabalho análogo à escravidão, com grupos móveis de fiscalização e a chamada Lista Suja. Mas isso não significa que estamos imunes:
De 1995 para cá, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão.
A cada ano, centenas de casos ainda são identificados em fazendas, confecções, carvoarias e obras urbanas.
Migrantes venezuelanos, bolivianos e haitianos estão entre as maiores vítimas atuais.
A escravidão mudou de donos e de cenários, mas continua respirando.
Por que lembrar 2 de dezembro?
Porque a memória é uma forma de proteção.
Esquecer é abrir espaço para repetir.
A Convenção de 1949 tentou enfrentar um problema que o século XXI ainda não resolveu: a capacidade humana de transformar gente em mercadoria.
E talvez este seja o ponto central: não existe abolição definitiva enquanto houver lucro na exploração da fragilidade humana.
Um lembrete incômodo
Se o 2 de dezembro existe, é porque a escravidão ainda existe.
E talvez o que mais assuste seja isto: a escravidão não habita apenas o passado das senzalas – ela se esconde em aplicativos de entrega, em oficinas clandestinas, em plantações isoladas, em fronteiras porosas, em redes globais de consumo e em cidades que fingem não ver.
O Dia Internacional para a Abolição da Escravatura não é uma data comemorativa.
É uma advertência.
Enquanto houver um ser humano submetido, silenciado ou vendido, não estaremos falando do passado – mas do presente que se recusa a ser futuro.

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