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Por DJALBA LIMA (*)

De Buenos Aires a Washington, passando por Roma e Santiago: as confissões do homem que levou o terror da ditadura Pinochet além das fronteiras.
Há 52 anos, em 11 de setembro de 1973, o médico e político Salvador Allende pagou com a vida a ousadia de tentar algo raro: construir o socialismo por via democrática. Ao ser eleito presidente do Chile, em 1970, com uma plataforma reformista, Allende despertou a ira de Washington.
O então presidente Richard Nixon e o conselheiro de Segurança Nacional Henry Kissinger consideraram sua vitória “inaceitável”. A ordem de Nixon ao diretor da CIA, registrada em memorandos oficiais, foi clara:
“Façam-no cair. Ainda que custe 10 milhões de dólares. E que o Congresso nunca saiba.”
A CIA financiou e estimulou uma série de iniciativas contra o governo Allende:
• Greves e sabotagens no transporte e nas minas de cobre (espinha dorsal da economia chilena na época);
• Campanhas de terror psicológico, com rumores e manipulação midiática;
• Compra de parlamentares, para tentar bloquear projetos do governo;
• E, por fim, apoio à conspiração que culminou no golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet.
Na manhã de 11 de setembro de 1973, os tanques cercaram o Palácio de La Moneda. Encurralado e com uma metralhadora, Allende resistiu até o fim. A democracia chilena foi destruída e substituída por uma ditadura que transformou o país em vitrine das políticas neoliberais de Milton Friedman — com uma economia aberta ao mercado, mas um povo aprisionado pelo medo.
As últimas palavras de Allende, transmitidas pela Radio Magallanes, ecoam até hoje:
“Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão este momento cinzento e amargo em que a traição pretende se impor. Sigam sabendo que muito mais cedo do que se espera, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores!”
Porões abertos
Cinco décadas depois, Relatos – A Estação da História entra em parte dos porões da ditadura de Pinochet. Não por especulação, mas pelas próprias palavras de um de seus personagens principais: Michael Townley.
Em 1978, temendo ser eliminado por seus próprios chefes – ou ser extraditado –, Townley escreveu uma série de documentos. Eles ficaram guardados por décadas. Só em 2023, o National Security Archive, nos Estados Unidos, os revelou ao público (veja mais detalhes no tópico Os documentos de Townley). São documentos explosivos, como foi a ação de seu autornos locais por onde deixou o rastro da morte.
O ex-agente da DINA escreveu:
“É óbvio que eles pretendem usar o fato de eu ser estrangeiro para tentar desviar a responsabilidade do governo chileno e também para me impedir de falar sobre as outras coisas que fiz pela DINA seguindo ordens do general Contreras”.
Norte-americano radicado no Chile, Townley trabalhou para a DINA (Dirección de Inteligencia Nacional), a polícia secreta criada em 1974 e comandada pelo general Manuel Contreras. A DINA foi responsável por milhares de prisões ilegais, torturas, desaparecimentos e assassinatos.
A história de Townley ultrapassa fronteiras: bombas em Buenos Aires e em Washington, veneno no Chile e no Uruguai, atentado na Itália… É o retrato cru de como o terrorismo de Estado se tornou política oficial.
Explosão e morte em Buenos Aires
Em 30 de setembro de 1974, o general Carlos Prats, ex-comandante do Exército chileno e ex-ministro de Allende, foi assassinado junto de sua esposa, Sofía Cuthbert, em Buenos Aires.
Uma bomba de controle remoto explodiu seu carro quando saíam de casa. O estrondo foi tão poderoso que alguns destroços atingiram o nono andar de um prédio vizinho. Carlos e Sofía morreram – ela, carbonizada.
O atentado foi planejado por Pedro Espinoza e Raúl Iturriaga, sob ordens de Contreras e com aval de Pinochet. Townley confessaria, anos depois, ter sido o responsável por montar e instalar a bomba.
Esse episódio marcou o primeiro grande atentado internacional da ditadura chilena e inaugurou a estratégia de exportar o terror.
O atentado contra Bernardo Leighton
Em 6 de outubro de 1975, em Roma, Itália, ocorreu uma tentativa de assassinato contra o democrata-cristão Bernardo Leighton, ex-vice-presidente do Chile e um dos mais respeitados opositores de Pinochet.
Leighton, então exilado, foi alvejado junto com sua esposa, Anita Fresno, em um ataque armado. Ambos ficaram gravemente feridos. Anita sofreu sequelas permanentes, perdendo parte de suas capacidades motoras e cognitivas.
A operação foi organizada pela DINA, em coordenação com grupos de extrema-direita europeus, dentro da lógica da repressão sem fronteiras. O episódio demonstrou que o braço de Pinochet se estendia não apenas à América Latina e aos Estados Unidos, mas também à Europa.
Um tribunal italiano condenou Townley à revelia por esse crime, mas ele não cumpriu a pena.
Terrorismo de Estado em Washington
Em 21 de setembro de 1976, outro ataque abalou o mundo. Uma explosão no centro de Washington, D.C. matou o ex-chanceler chileno Orlando Letelier e sua colega norte-americana Ronni Karpen Moffitt.
Letelier havia sido preso após o golpe, libertado graças à pressão internacional, e exilado nos EUA, onde se tornara um dos principais opositores da ditadura.
Às 9h35 daquela manhã de 21 de setembro, uma bomba acionada por controle remoto explodiu sob o carro que conduzia o ex-ministro e seus auxiliares . Letelier morreu a caminho do hospital. Ronni Moffitt, de 25 anos, morreu sufocada pelo próprio sangue após ter a carótida seccionada. Seu marido, sentado no banco traseiro, sobreviveu.
Foi Michael Townley quem montou a bomba e a instalou, seguindo ordens diretas de Manuel Contreras. Townley também articulou o apoio de exilados cubanos anticastristas, usados como milicianos terceirizados. Antes de se decidir pela utilização da bomba, Townley considerou usar o gás sarin para assassinar Letelier. A arma química chegou a ser enviada a Washington escondida em um dispensador de perfume Chanel nº 5.
Para não chamar a atenção, Townley entrou nos Estados Unidos com documentos falsos em nome de “Hans Petersen”.
O atentado é lembrado como o maior ato de terrorismo de Estado já cometido em solo norte-americano.
O caso Pablo Neruda
Em 2011, a morte do poeta Pablo Neruda, ocorrida em 23 de setembro de 1973, voltou ao centro das atenções. Seu motorista declarou que, na clínica onde o poeta estava internado, um homem identificado como “Dr. Price” teria aplicado uma injeção letal. A descrição física do misterioso “Dr. Price” coincidiu com a de Michael Townley.
Exumações posteriores confirmaram que Neruda tinha câncer de próstata avançado, mas análises detectaram também a presença da bactéria Clostridium botulinum, associada a armas biológicas. O caso permanece em aberto, alimentando a suspeita de que Neruda pode ter sido vítima de envenenamento.
Gás: o terror invisível
Townley também confessou ter ajudado a instalar um laboratório secreto em sua casa em Lo Curro, em Santiago. Ali, junto ao químico Eugenio Berríos, produziu gás sarin, classificado pela ONU como arma de destruição em massa.
Esse projeto, conhecido como “Andrea”, foi usado em assassinatos quase imperceptíveis. Entre as vítimas estão:
• Renato León Zenteno (1976), advogado conservador crítico ao regime;
• Manuel Leyton (1977), cabo do Exército e agente da própria DINA;
• Carlos Guillermo Osorio, diplomata ligado à emissão de passaportes falsos;
• Carmelo Soria, diplomata espanhol que trabalhava na CEPAL: capturado, torturado, envenenado e abandonado num carro.
Vítima do próprio veneno
Décadas depois, descobriu-se que o próprio Eugenio Berríos foi vítima de uma “queima de arquivo”: levado clandestinamente ao Uruguai em 1991, ele conseguiu fugir e chegar a uma delegacia de Parque del Plata em 15 de novembro de 1992 para denunciar que estava sendo mantido em cárcere por militares chilenos e uruguaios. Mas foi devolvido aos seus sequestradores e assassinado pouco depois. Seu corpo só seria encontrado em abril de 1995, semienterrado na praia de El Pinar, perto de Montevidéu.
Em decisões de 2010 confirmadas pela Suprema Corte do Chile em 2015, 14 militares chilenos e uruguaios foram condenados por associação ilícita, sequestro e homicídio, em um episódio reconhecido como um dos últimos atos da Operação Condor. Além de ter conduzido o Projeto Andrea (produção de gás sarin para a DINA), há alegações – reportadas em 2006 e não comprovadas pela Justiça – de que Berríos teria produzido ‘cocaína negra’ para exportação, em esquema com o envolvimento de altas figuras do regime de Pinochet.
Contreras, Townley e a sombra da impunidade
Esses episódios – bombas, venenos e atentados transnacionais – revelam a face mais sombria da ditadura Pinochet: o terrorismo de Estado transformado em política oficial.
Manuel Contreras, chefe da DINA, foi condenado a mais de 500 anos de prisão por crimes contra a humanidade. Morreu em 2015, aos 86 anos, cumprindo pena em Punta Peuco, prisão militar construída durante seu comando. Foi mantido com a patente de general até a morte.
Michael Townley, por sua vez, nunca cumpriu pena no Chile. Após colaborar com a justiça norte-americana, vive até hoje sob proteção nos EUA, no programa de testemunhas.
Os documentos de Townley

Em março de 1978, acuado pela possibilidade de ser silenciado por seus próprios chefes, Michael Townley redigiu um documento intitulado “Confissão e Acusação”. Nele, deixou uma mensagem inequívoca:
“Se houve razão suficiente para abrir este envelope, acuso o governo do Chile pela minha morte.”
Townley sabia que, cercado pelo FBI por seu papel no assassinato de Orlando Letelier e Ronni Karpen Moffitt, em setembro de 1976, era também alvo de desconfiança dentro da própria ditadura a que servira. Se fosse encontrado morto, escreveu, a responsabilidade deveria recair sobre o general Manuel Contreras, comandante da DINA. Mais do que isso: nomeou colegas da própria agência como prováveis executores do “crime de seu assassinato”.
O documento fazia parte de uma série de relatórios dramáticos que Townley produziu em um gesto calculado: dissuadir seus superiores de matá-lo e, ao mesmo tempo, oferecer às autoridades norte-americanas um mapa detalhado da criminalidade da polícia secreta de Pinochet.
Um segundo manuscrito, intitulado “Histórico das Atividades na DINA”, registra sua carreira de quatro anos como assassino a serviço da ditadura. Nele, Townley descreve como foi recrutado em 1974, instalado em uma mansão no bairro nobre de Lo Curro, em Santiago, e incumbido de montar um laboratório de guerra química em seu porão. Também revela que foi nomeado para liderar a Agrupación Avispa (Grupo Vespa), unidade especial subordinada à Brigada Mulchén, “dedicada à eliminação” de opositores do regime. Nesse histórico, cita o uso do gás sarin, produzido artesanalmente em sua casa, para assassinar chilenos.
Em um terceiro texto manuscrito, “Relato dos Eventos da Morte de Orlando Letelier em 21 de setembro de 1976”, Townley detalha passo a passo a missão secreta de Washington. O atentado, segundo ele, contou com apoio do Condor Vermelho, a rede da Operação Condor que articulava serviços de inteligência das ditaduras do Cone Sul.
As ordens, escreveu Townley, eram explícitas:
“Encontrar a casa e o local de trabalho de Letelier e contatar o grupo cubano [de exilados violentos que trabalhavam para a DINA] para eliminá-lo, ou usar gás sarin, ou orquestrar um acidente, ou, no final, por qualquer método – mas o governo do Chile queria Letelier morto.”
Esses documentos, mantidos em segredo por décadas, vieram a público somente em 2023, publicados pelo National Security Archive em Washington. Suas páginas confirmam, com a frieza da confissão, que a ditadura de Pinochet transformou o assassinato político em política de Estado, levando bombas e venenos muito além das fronteiras chilenas.
A prisão de Pinochet em Londres
Em outubro de 1998, enquanto se recuperava de uma cirurgia em Londres, Augusto Pinochet foi surpreendido por um mandado internacional de prisão expedido pelo juiz espanhol Baltasar Garzón. O pedido baseava-se em acusações de tortura, sequestro e crimes contra a humanidade, praticados durante sua ditadura.
Pinochet ficou detido em uma residência vigiada por mais de 500 dias, em meio a uma batalha judicial que mobilizou governos, diplomatas e advogados em todo o mundo. Embora tenha sido libertado em 2000 por razões médicas e autorizado a regressar ao Chile, o episódio foi histórico: pela primeira vez, um ex-chefe de Estado foi preso em aplicação do princípio da jurisdição universal para crimes de lesa-humanidade.
A prisão em Londres abriu caminho para novos processos contra ditadores e marcou simbolicamente a erosão da impunidade internacional. Pinochet morreu em 2006, aos 91 anos, em Santiago do Chile. Em 2004, uma reportagem do Washington Post revelou que as investigações do Senado dos Estados Unidos nas fontes financiamento ao terrorismo descobriu milhões de dólares mantidos secretamente por Pinochet no Riggs Bank, conhecido como “o banco dos presidentes” e envolvido em uma série de escândalos de lavagem de dinheiro.
Lição da História: o preço é alto
As confissões de Michael Townley não são apenas ecos do passado. Elas são advertências vivas – advertências sobre o que acontece quando uma nação aceita de olhos fechados a intervenção estrangeira como algo positivo.
No Chile, a democracia foi sufocada com apoio explícito dos Estados Unidos. E, no lugar dela, ergueu-se um dos regimes mais brutais do mundo, marcado por torturas, desaparecimentos e exílios. E. traço comum em regimes autoritários, envolvido em escândalos de corrupção.
A lição do Chile é clara: quando a soberania nacional é rifada em nome de um projeto de poder, quem perde não são apenas os governantes depostos. Quem perde é o povo inteiro. Perde a liberdade, perde a voz, perde o direito de decidir o próprio destino.
Que a história de Salvador Allende e das vítimas do terrorismo de Estado sirva como alerta.
O preço de aceitar tutelas externas e líderes messiânicos é sempre alto demais.
(*) DJALBA LIMA é jornalista;

Excelente!
Não podemos esquecer que Jair Bolsonaro declarava, sempre que achava oportuno, sua admiração pelo sanguinário Pinochet, no que era apoiado pelo nefasto Paulo Guedes.
Bem lembrado, Luiz de Aquino.