A anistia que abriu a porta para a democracia. E a que pode fechá-la

Por DJALBA LIMA (*)

Entenda as diferenças entre a anistia que marcou a transição do Brasil para a democracia e a proposta atual que pode legitimar golpismo.

Em 1979, a Lei da Anistia marcou o início do processo de redemocratização no Brasil, ainda que tenha absolvido torturadores e assassinos do regime militar. Hoje, um novo projeto de anistia tenta perdoar conspiradores e condenados por tentativa de golpe contra a democracia. Mas será que as duas situações são comparáveis?

A anistia de 1979: contexto e contradições

Em 28 de agosto de 1979, o presidente João Figueiredo sancionou a Lei nº 6.683, conhecida como Lei da Anistia.

O Brasil ainda vivia sob a ditadura militar (1964–1985): censura, perseguições, tortura, assassinatos e repressão política eram cotidianos. Movimentos de artistas, estudantes, sindicatos, exilados e familiares de presos políticos pressionavam o regime por uma abertura.

A anistia:

• Libertou presos políticos;

• Permitiu o retorno de exilados;

• Reabriu espaço para partidos e militância.

Porém, o “pacote” também beneficiou os agentes da repressão, incluindo torturadores. O resultado foi uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, mas que deixou impunes crimes de lesa-humanidade – ferindo princípios do direito internacional.

Assim, a anistia de 1979 foi ao mesmo tempo um passo adiante na transição e um freio na responsabilização histórica.

A proposta atual de anistia: democracia em risco

Em pleno regime democrático, tramita no Congresso projeto de anistia para beneficiar acusados e condenados por tentativa de golpe de Estado.

O contexto é radicalmente distinto:

• O Brasil hoje tem plena liberdade de imprensa, partidos, eleições e manifestações;

• Não há supressão de direitos civis, como na ditadura;

• Os acusados tiveram e têm direito a ampla defesa e julgamento público.

Diferente de 1979, não se trata de reinserir cidadãos num espaço político bloqueado. Trata-se de perdoar aqueles que atacaram o Estado democrático de direito.

Mais grave: tal perdão recompensa a insubordinação e sinaliza tolerância à repetição de golpes, como já ocorreu na história brasileira com as anistias aos levantes militares de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959), que apenas adiaram a ruptura de 1964.

Impunidade, aprendizado negativo e erosão democrática

A ciência política mostra que, quando ataques graves à ordem constitucional não geram responsabilização, atores políticos aprendem que o custo de transgredir é baixo. Esse “aprendizado negativo” incentiva novas investidas e contribui para a erosão institucional (democratic backsliding).

Como ocorre: em vez de tanques nas ruas, a erosão vem de forma incremental – manipulação das regras, intimidação do Judiciário, ataques às urnas, deslegitimação de adversários. Esse processo foi descrito como “autocratic legalism” (em português “legalismo autocrático” ou “legalidade autocrática”).

Por que punir importa: pesquisas de Kathryn Sikkink demonstram que julgamentos por violações graves têm efeito dissuasório; já a impunidade abre a porta para reincidências.

O padrão interamericano: a Corte Interamericana de Direitos Humanos firmou que leis de anistia que impedem investigar e punir graves violações são incompatíveis com a Convenção Americana.

Assim, perdoar golpistas não é “pacificar”, mas baixar o custo da subversão. Democracias sobrevivem quando deixam claro que ataques às instituições terão consequências.

Constitucionalidade e legalidade da proposta

Do ponto de vista jurídico, a proposta atual levanta sérias dúvidas quanto à sua constitucionalidade:

Crimes contra a democracia

A Constituição de 1988 prevê, no artigo 5º, XLIV, que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”.

Ou seja: não cabe anistia a atos que atentem contra a democracia.

Competência do Congresso

O Congresso pode legislar sobre anistia, mas está limitado pela própria Constituição.

Uma lei que contrarie cláusulas pétreas – como a defesa do Estado democrático – seria passível de questionamento no Supremo Tribunal Federal.

Direito internacional

Tratados assinados pelo Brasil reforçam a imprescritibilidade de crimes que atacam a ordem democrática e os direitos humanos.

Uma anistia que absolva golpistas poderia expor o país a questionamentos internacionais e enfraquecer compromissos firmados.

Portanto, a proposta não apenas é politicamente perigosa, mas também juridicamente frágil.

Comparando as duas anistias

AspectoAnistia de 1979Anistia em debate hoje
Regime políticoDitadura militarDemocracia constitucional plena
Sujeitos beneficiadosExilados, presos políticos, torturadores e militaresConspiradores e condenados por tentativa de golpe
ObjetivoTransição e pacificação socialReabilitar golpistas
Efeitos políticosReabertura política com impunidade a torturadoresEstímulo a futuros golpes e erosão democrática
Fundamento jurídicoLegalidade questionada à luz dos direitos humanos. Não havia constituição democráticaInconstitucional por atacar cláusulas pétreas da Constituição de 1988

Democracia: aperfeiçoar ou destruir?

Winston Churchill dizia que a democracia é o pior dos regimes, exceto todos os outros. É imperfeita, mas insubstituível.

• Em 1979, a anistia buscava abrir caminho à democracia.

• Hoje, a anistia buscaria abrir caminho à sua destruição.

A lição da História é clara: democracias não sobrevivem quando seus inimigos são sistematicamente perdoados. Ao contrário, a impunidade apenas alimenta novas aventuras autoritárias.

Para nunca esquecer

A anistia de 1979 foi contraditória, mas funcionou como ponte frágil para a redemocratização. Já a proposta de hoje mina as bases dessa democracia.

• Uma foi parte de um pacto de transição – questionável mas legítima.

• A outra é um projeto de regressão – questionável e espúria.

A verdadeira luta contemporânea não é por anistiar golpistas, mas por aperfeiçoar a democracia, fortalecer instituições e garantir que crimes contra a liberdade nunca mais sejam tolerados.

(*) DJALBA LIMA é jornalista

CRÉDITOS

Fotos do Arquivo Público do Estado de São Paulo e do Arquivo do Senado

djalba.lima@gmail.com Escrito por:

6 Comentários

  1. CARLOS MEDEIROS
    setembro 19, 2025
    Responder

    Djalba Lima é sempre brilhante em seus escritos. Excelente artigo. Parabéns.

  2. Marly Paiva
    setembro 20, 2025
    Responder

    Aí está o que precisava ser dito! Um artigo bem fundamentado, de fácil compreensão e contundente. É inadmissível anistia para golpistas. Quem atenta contra o estado democrático de direito tem de ser punido.

  3. MARIOSAN GONCALVES
    setembro 20, 2025
    Responder

    Muito bom, como sempre, esse relato. Já estamos estupefatos com as experiências de perdão aos inimigos da democracia. Essa é a grande oportunidade do país dar um basta nisso! Por isso, é muito importante, amanhã, domingo, sairmos da rotininha dominical e fazer algo mais relevante para o momento: Saia pra rua e se junte aos que querem um Brasil mais justo! E grite com convicção: ANISTIA NÃO!

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