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Em 9 de outubro de 1967, Ernesto “Che” Guevara foi executado nas montanhas da Bolívia. A versão oficial inicial falava em “morte em combate”. Era uma mentira conveniente para evitar o escândalo de uma execução sumária. Mas, décadas depois, documentos desclassificados da CIA, memorandos do governo dos Estados Unidos e registros diplomáticos escancaram aquilo que foi cuidadosamente ocultado: sua morte foi um ato político deliberado disfarçado em narrativa militar.
Neste post, percorremos alguns desses documentos – disponibilizados por meio de solicitações de transparência e pelo trabalho de arquivos como o National Security Archive – para reconstruir os bastidores e refletir sobre seu significado real para a história latino-americana.

O diário que se tornou arma política
Um dos documentos mais impactantes é o “The Che Guevara Diary”, liberado pela CIA. Ele revela o planejamento, as incertezas e os dilemas da campanha guerrilheira em Ñancahuazú – inclusive tensões com grupos bolivianos, dificuldades de suprimento e escolhas estratégicas arriscadas.
Em complemento, o memorando “Highlights of ‘Che’ Guevara’s Diary”, enviado ao presidente Lyndon Johnson via Walt Rostow, sintetiza as partes que a Casa Branca considerou mais úteis à narrativa política da época.
Esse tipo de documento mostra como o poder filtra versões: o que entra no arquivo presidencial raramente é tudo – e aquilo que sobra molda a memória oficial.
O relatório Helms: execução e encobrimento
Nos memorandos desclassificados, há um documento assinado por Richard Helms, então diretor da CIA: Capture and Execution of ‘Che’ Guevara.
Ele confirma que Guevara não morreu em combate, mas foi executado “às 13h15, com uma rajada de metralhadora M-2”. Quem acionou a M-2 naquele 9 de outubro de 1967 foi o então jovem sargento Mario Terán, que se ofereceu como voluntário para a missão.
Um dia antes, em 8 de outubro de 1967, na Quebrada del Yuro, Che e seus companheiros foram cercados. Ferido nas pernas e sem munição, ele se rendeu. Che teria então dito a seus captores:
“Não atire. Sou Che Guevara e valho mais vivo do que morto”.
Durante 24 horas, ele permaneceu preso numa pequena escola de adobe, na vila de La Higuera. No dia seguinte, às 11h50, o comando militar boliviano recebeu ordens diretas de La Paz:
“Proceder à execução.”
Após a execução, o cubano Félix Rodríguez, que trabalhava como agente da CIA e auxiliava os militares bolivianos na caçada ao líder guerrilheiro, confirmou a morte por uma mensagem codificada a Washington:
“Che Guevara está morto. Missão cumprida.”
É uma afirmação direta que corrige o discurso do governo boliviano da época, que alegava ferimentos de batalha como causa da morte.
Outro documento, Circumstances Surrounding Death of Che Guevara, também da CIA, oferece uma breve avaliação do evento com linguagem sigilosa, mas suficiente para apontar que a execução foi uma decisão deliberada. Diz o documento:
“O prisioneiro foi eliminado conforme decisão do Alto Comando. A execução visou evitar repercussões internacionais.”
Documento escrito por Walt Rostow, assessor da Casa Branca, informa ao presidente Lyndon Johnson:
“A eliminação de Che Guevara é uma vitória para o mundo livre.”
Esses documentos mudam radicalmente a natureza da narrativa: Che não teria sido “abatido em confronto”, mas eliminado sob ordens de comando militar – uma morte programada mascarada como fatalidade de guerra.
Comunicações diplomática: o silêncio planejado
Nos registros do Departamento de Estado dos EUA, encontramos telegramas e notas que comentam a versão boliviana da morte de Che. Um desses documentos reconhece que o governo boliviano divulgou a versão de “morte em combate” com base em sua conferência de imprensa de 10 de outubro, mas alertou que essa narrativa “carece de verificação”.
Além disso, no volume Foreign Relations of the United States (FRUS), há referência a um telegrama diplomático de 12 de outubro informando que “foi impossível mantê-lo vivo” no local da captura – uma expressão vaga usada para encobrir a ordem de execução.
Esses registros diplomáticos compõem a sombra silenciosa nos bastidores do poder: a versão escrita que contraria a versão pública.
A presença de Che rastreada pela CIA
Antes mesmo da captura, os documentos da CIA registravam com cautela a presença de Che na Bolívia. Um relatório de meados de 1967 classifica a guerrilha boliviana como “inspirada por Cuba” e afirma que Guevara estava “pessoalmente dirigindo” a operação local.
Outro telegrama, de campo, informa que em 8 de outubro uma ação militar no leste da Bolívia resultou em “vários guerrilheiros mortos e dois capturados; um deles possivelmente Ernesto ‘Che’ Guevara, ferido e a ponto de morrer.”
Esses registros mostram que os serviços de inteligência já o monitoravam de perto e que sua presença não era apenas rumor, mas fato confirmado por diversas fontes.
Em abril de 1967, Washington e La Paz firmaram um acordo para treinar um batalhão especial — o Segundo Batalhão Ranger — sob orientação direta da CIA e do Exército norte-americano.
A lição amarga para a esquerda latino-americana
No interior dos próprios movimentos de esquerda, a morte de Che Guevara provocou um debate profundo e, por vezes, doloroso. Afinal, até que ponto sua estratégia de guerrilha – baseada na chamada “teoria do foco revolucionário” (foquismo) – era realmente viável na América Latina?
Essa teoria sustentava que um pequeno grupo armado, instalado em áreas rurais, poderia acender o pavio da revolução e inspirar o povo a se levantar. Mas, na prática, o modelo se mostrou frágil diante das realidades locais: desconfiança e falta de apoio das populações camponesas; fragmentação das esquerdas; e eficiência militar dos governos apoiados por Washington.
Com o tempo, estudiosos e antigos militantes reconheceram que Che subestimou a importância das condições políticas e sociais de cada país. Sua ousadia estratégica era admirável, mas o excesso de voluntarismo – a crença de que a vontade revolucionária bastava para mover a história – revelou-se fatal. Em certo sentido, Che foi derrotado não apenas por seus inimigos, mas também pela própria fé na ação heroica como motor absoluto da mudança.

Muito bom. Parabéns, Lima! Pensar que a mesma Casa Branca nas mãos de um tirano continua assombrando a América Latina até hoje. Ou melhor até há poucos minutos. Salve Guevara!