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Por DJALBA LIMA (*)
João Goulart deixou o Brasil na madrugada silenciosa de 2 de abril de 1964, não por escolha, mas por fidelidade a um princípio: evitar que o país escorregasse para a guerra civil. Cruzou a fronteira rumo ao Uruguai escoltado por soldados que até horas antes lhe deviam obediência.
Foi recebido não como presidente deposto, mas como um homem inquieto, preocupado com o destino de um país que lhe virara as costas. No exílio, primeiro em Montevidéu e depois na pequena Mercedes, na Argentina, Jango viveu cercado de vigilância, espionagem e suspeitas – mas também de melancolia, saudade e uma sensação que jamais o abandonou: a de que sua queda abriu feridas profundas na democracia brasileira.
A casa simples de Mercedes, onde morreu em 6 de dezembro de 1976, tornou-se símbolo dessa travessia. Ali, distante das multidões que o aclamaram no comício da Central do Brasil e dos palácios que um dia habitou, Jango enfrentou o vazio político e humano do exílio. Morreu longe da pátria que tentou reformar, cercado de dúvidas que atravessaram décadas – e cuja sombra ainda paira sobre a memória nacional.
É impossível compreender o Brasil sem compreender Jango. É impossível compreender Jango sem enfrentar os mitos que distorcem sua história.
A seguir, os 10 mitos que ainda moldam – e desfiguram – a trajetória de João Goulart. E a verdade histórica sobre cada um deles.
1. “Jango era comunista” – mito que confunde reforma com revolução
Relatórios da CIA e de setores das Forças Armadas classificaram Jango como “simpatizante do comunismo”. Mas esse rótulo refletia a lente deformada da Guerra Fria, que via conspiração em qualquer avanço social.
Jango era um reformista democrático. Acreditava que o capitalismo brasileiro só se tornaria forte se mais brasileiros participassem dele.
Ao contrário da propaganda da época, as Reformas de Base tinham como objetivo **fortalecer o capitalismo brasileiro**, não substituí-lo.
A lógica das reformas era profundamente capitalista:
• Reforma agrária → ampliar produtividade e criar milhões de novos consumidores.
• Reforma bancária → reduzir juros, democratizar crédito e modernizar investimentos.
• Reforma urbana → organizar expansão de cidades e criar segurança jurídica para o mercado imobiliário.
• Reforma fiscal → tornar o Estado mais eficiente e reduzir desigualdades extremas que travavam o consumo interno.
• Reforma educacional → criar mão de obra moderna para uma economia industrial competitiva.
Essas políticas se pareciam muito mais com:
• New Deal americano,
• Plano Marshall europeu,
• e as reformas capitalistas do pós-guerra no Japão e na Itália, do que com qualquer agenda socialista.
O problema é que, no Brasil da década de 1960, qualquer redistribuição de poder ou renda era vista como ameaça existencial pelas elites. Por isso, chamaram de “socialista” aquilo que era, na verdade, uma tentativa de fazer o capitalismo funcionar para mais gente.
2. “Era apenas herdeiro do getulismo” – redução que apaga sua originalidade política
Jango se formou sob Vargas, mas não foi extensão mecânica do getulismo.
Enquanto o trabalhismo varguista buscava equilíbrio entre forças, Jango propôs reformas estruturantes, adaptadas a um Brasil mais urbano e industrial.
Ele modernizou o trabalhismo e ampliou sua ambição. Era herdeiro, mas também inovador.
3. “Era emocional, indeciso, fraco” – caricatura usada para justificar o golpe
O Jango real era outro: articulador paciente, negociador habilíssimo e avesso ao aventureirismo. Costurou soluções institucionais delicadas – como o parlamentarismo em 1961 – e conduziu debates intensos com firmeza.
A narrativa da “fraqueza” foi um instrumento político. Sua prudência diante do risco de guerra civil foi usada, injustamente, como sinônimo de indecisão.
4. “Era inimigo das Forças Armadas” — falso: o conflito não nasceu dele
Jango tinha relações consolidadas com oficiais e era um legalista. O atrito não foi pessoal, mas ideológico.
Parte das Forças Armadas — doutrinada pela lógica de guerra interna, pela Escola Superior de Guerra e por interesses geopolíticos americanos — passou a ver qualquer redistribuição de poder como ameaça subversiva.
Jango não provocou o conflito; foi engolido por ele.
5, “O país estava à beira do caos econômico por culpa de Jango” – mito que oculta o boicote externo deliberado
A crise existia – inflação crescente, greves, queda da renda per capita. Mas apresentar esse quadro como resultado exclusivo da “incompetência” de Jango falseia a história.
O que os discursos da época escondiam:
a) Os Estados Unidos impuseram um boicote econômico ao Brasil
A partir de 1962–63, após a aproximação de Jango com reformas estruturais e nacionalizações, Washington passou a bloquear o acesso do Brasil a linhas de crédito:
FMI: travou negociações e condicionou empréstimos à adoção de um programa ortodoxo que inviabilizaria as Reformas de Base.
Banco Mundial (Bird): suspendeu projetos e novos financiamentos.
BID: reduziu drasticamente concessão de crédito e exigiu contrapartidas incompatíveis com o programa social do governo.
Esse boicote enfraqueceu a capacidade do Estado de investir, agravou a crise cambial e pressionou a inflação.
b) Empresas multinacionais e setores empresariais internos reduziram investimentos
Movimento sincronizado com a expectativa de queda do governo, como mostram relatórios da época.
c) O cenário era grave, mas amplificado politicamente
A inflação era alta, sim, mas setores conservadores e a mídia construíram uma narrativa de “colapso total” para justificar a ruptura institucional.
Na prática, a economia brasileira enfrentava uma combinação de:
• choques externos,
• sabotagem interna,
• bloqueio financeiro internacional,
• e resistência das elites às reformas.
Ou seja: era um caos político que se apresentava como caos econômico.
6. “Jango governava pressionado apenas pela esquerda” – mito que ignora a verdadeira armadilha histórica
A imagem de que Jango era “refém dos comunistas” ou “dominado pelo CGT” simplifica um quadro muito mais complexo.
Jango estava espremido entre dois radicalismos, e ambos o pressionavam intensamente:
a) Pressão pela esquerda
• CGT, UNE, sindicatos, PCB e movimentos populares exigiam reformas imediatas;
• queriam decretos, desapropriações, aceleradores políticos;
• criticavam Jango por ser “lento” ou “conciliador demais”.
b) Pressão pela direita
• UDN, IPES/IBAD, imprensa conservadora e parte das Forças Armadas demonizavam qualquer avanço social;
• atacavam o governo como “caótico” e “subversivo”;
• sabotavam negociações e alimentavam clima de ruptura.
A armadilha:
Jango governava num país dividido: se cedesse à esquerda, seria visto como revolucionário; se cedesse à direita, seria acusado de traição por sua base.
Não havia centro, nem moderação possível. Era um Brasil em convulsão, que acabaria implodindo qualquer governo.
Jango não caiu por estar “preso à esquerda”, mas por tentar governar entre forças inconciliáveis.
7. “Jango tolerava corrupção” – afirmação sem base factual
Não houve escândalos de corrupção relevantes ligados ao presidente. Com fortuna própria e sob vigilância permanente dos seus adversários, qualquer deslize seria explorado. Nunca foi.
A acusação de “leniência” é um rótulo vazio, criado para desgaste político.
8. “Caiu porque não soube negociar” – meia verdade que ignora a assimetria do jogo político
Jango negociou – e muito – com Congresso, governadores, militares, movimentos sociais e embaixadas. Mas negociava num sistema já capturado pelo golpismo, com pressões internas e externas tornando qualquer acordo insustentável.
Não foi falta de habilidade. Foi ingovernabilidade estrutural.
9. “Não resistir ao golpe foi covardia” – um dos mitos mais cruéis
Jango recusou a resistência armada porque sabia o que estava por vir: tanques, bombardeios, ruptura nas tropas e a Operação Brother Sam, prontinha para apoiar os golpistas com combustível, munição e logística.
Resistir significaria mortos nas ruas. Sua decisão foi um ato de sacrifício patriótico, não de medo.
10, “Sua morte foi natural e ponto final” — enigma que permanece aberto
Jango morreu em 6 de dezembro de 1976, na Argentina, oficialmente de infarto.
Mas vivia sob vigilância da Operação Condor, e opositores latino-americanos estavam sendo eliminados por regimes militares coordenados.
A exumação de 2013 não encontrou veneno, mas também não dissipou as suspeitas.
Sua morte continua sendo um capítulo inconcluso da história brasileira.
Para refletir:
João Goulart não foi o presidente fraco, o comunista infiltrado ou o desorganizador do país – foi, antes, o líder que ousou tentar modernizar um Brasil preso a si mesmo.
E pagou um preço altíssimo por propor que o capitalismo funcionasse para mais do que meia dúzia de famílias.
Décadas depois, ainda não compreendemos plenamente o tamanho das forças que o derrubaram – nem o tamanho do homem que tentaram calar.
(*) DJALBA LIMA é jornalista e editor de Relatos – A Estação da História.
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Relato essencial sobre a história do Brasil em momento especialmente conturbado. Parabéns, Djalba.
Pois é. O GOLPE continua até agora …. Como é difícil derrotar esse câncer..