O homem do ônibus 203: Eichmann, a caçada e o julgamento do século

TRANSCRIÇÃO DO PODCAST

SAMARA: Quando aquele operário de uniforme azul da Mercedes Benz desceu do ônibus da linha 203, às 20h05 de 11 de maio de 1960, em um subúrbio modesto de Buenos Aires, não fazia ideia de que estava dando seus últimos passos como homem livre. Muito menos que quase um ano depois seria o centro de um dos julgamentos mais importantes do século.

DJALBA: O homem de passos curtos, cabeça baixa e olhar cansado chamava-se, nos documentos, Ricardo Klement.

SAMARA: Mas por trás desse nome escondia-se um dos arquitetos da Solução Final: o tenente-coronel da SS Adolf Eichmann – um homem cruel que colocou em movimento as ferrovias da morte na Europa ocupada.

DJALBA: Exatamente – as “ferrovias da morte” foram sistematicamente utilizadas pela Alemanha Nazista no transporte de milhões de pessoas, a maioria judeus, para guetos, campos de concentração e, crucialmente, campos de extermínio durante o Holocausto.

SAMARA: Adolf Eichmann foi uma figura central nessa logística macabra: ele coordenava pessoalmente o embarque das pessoas que eram despachadas para os campos de extermínio. Era o responsável pela logística da morte.

DJALBA: Mas é bom contar alguns detalhes antes de prosseguir. Por anos, acreditou-se que Eichmann estivesse morto.

A virada se deu em 1957, quando Lothar Hermann, um judeu alemão, cego, que vivia nos arredores de Buenos Aires, percebeu que o namorado de sua filha se gabava de que o pai “fora um grande oficial alemão”. Hermann “ligou os pontos”, investigou discretamente e enviou uma carta às autoridades alemãs.

O nome “Klement” começou a circular.

A informação chegou ao Mossad. Levaram dois anos para checar cada detalhe.

SAMARA: Fiquei na dúvida: Hermann enviou a carta com suas suspeitas às autoridades alemãs? Por que não diretamente ao Mossad?

DJALBA: Boa pergunta. Quando Lothar Hermann desconfiou da identidade de Ricardo Klement, em 1957, ele enviou uma carta ao promotor alemão Fritz Bauer, em Hessen, na então Alemanha Ocidental. Por quê? Naquele momento, Lothar Hermann não tinha contato direto com o serviço secreto israelense, o Mossad, e acreditava que a Alemanha teria interesse em capturar ex-oficiais nazistas.
Quem era Fritz Bauer? Um sobrevivente do nazismo, jurista judeu, profundamente comprometido em levar criminosos de guerra à Justiça. Foi Bauer quem levou a denúncia a sério, investigou discretamente, e entrou em contato com o Mossad depois que as autoridades alemãs demonstraram relutância.

SAMARA: Como Eichmann chegou à Argentina?

DJALBA: Após a queda do Reich, muitos criminosos nazistas escaparam pela Europa usando as chamadas ratlines — redes clandestinas de fuga que os levaram a portos italianos e, de lá, à América do Sul.

SAMARA: Literalmente, “trilhas de ratos” — rotas de fugas clandestinas. Como operavam?

DJALBA: Essas rotas de fugas clandestinas operavam da seguinte forma: documentos falsos (muitas vezes emitidos pela Cruz Vermelha Internacional); redes de apoio em portos italianos (especialmente Gênova e Roma); simpatizantes nazistas, ex-militares e intermediários civis; alguns membros do clero católico. Além de Eichmann, outros nazistas famosos usaram as “trilhas de ratos” para escapar, como Josef Mengele, Klaus Barbie e Walter Rauff.

SAMARA: No próximo bloco, vamos dar mais detalhes da operação de captura de Eichmann em Buenos Aires. Fique ligado!

SAMARA: Em março de 1960, uma equipe de elite do Mossad desembarcou clandestinamente na Argentina. Rafi Eitan comandava a operação em campo. Zvi Aharoni cuidava da identificação. Peter Malkin faria a captura. Tudo sob a supervisão direta de Isser Harel, então diretor do Mossad.

DJALBA: Por semanas, observaram Ricardo Klement (ou Adolf Eichmann): seus hábitos, suas rotinas, seus gestos. Aharoni teve certeza quando viu o homem ajustar os óculos atrás das orelhas, exatamente como nas fotos da SS.

SAMARA: A confirmação veio num sussurro: “É ele.”

DJALBA: 11 de maio de 1960. Eichmann desce do ônibus e caminha. Um carro preto se aproxima.

SAMARA: Peter Malkin salta e diz:
— “Momentito, señor!”

DJALBA: Eichmann hesita, mas reage e parte para a luta com Malkin.
A briga dura apenas alguns segundos.

SAMARA: Imobilizado, Eichmann é colocado no carro.

DJALBA: Dentro do veículo, a pergunta decisiva:
– Seu nome?
Ele não escondeu a identidade real:
– Eu sou Adolf Eichmann.

SAMARA: Antes de prosseguir, um pequeno parêntese. Para muitos agentes, aquela era mais uma missão. Para Rafi Eitan, não.

DJALBA: Ele carregava uma dor que poucos conheciam. Vários de seus parentes foram exterminados em campos de concentração. Família inteira desfeita pelo sistema que Eichmann ajudou a montar.

DJALBA: Há relatos – transmitidos por colegas e confirmado por Eitan em conversas posteriores – de que uma parente muito próxima, tratada como irmã, foi morta com o filho pequeno que chorava num campo de concentração.

SAMARA: Mesmo assim, diante de Eichmann, Eitan sabia que não podia agir movido por ódio. Ele dizia: “Se a vingança guiar minhas mãos, a missão fracassará”..

DJALBA: Por isso, durante toda a operação, Eitan evitou olhar para Eichmann por muito tempo. Respiração controlada. Movimentos calculados. Nada de excessos.

SAMARA: O objetivo não era um assassinato clandestino. Nem vingança, e sim justiça – diante do mundo.

DJALBA: Eichmann foi levado para uma casa segura, mantido sob vigilância constante. Ali, foi cuidadosamente barbeado e teve o visual discretamente alterado – raspado, como diziam os agentes – para perder qualquer resquício da aparência rígida dos tempos da SS.

SAMARA: Depois disso, vestiram-no com o uniforme civil da companhia aérea El Al. O plano era fazê-lo passar por um funcionário israelense que sofrera um acidente e precisava ser repatriado sedado. Crachá, documentos médicos falsos, cadeira de rodas — tudo preparado com precisão milimétrica.

DJALBA: Na noite de 20 de maio de 1960, ele embarca. O avião decola. Cruza as águas internacionais.

SAMARA: O piloto diz: “Estamos fora do território argentino.”

DJALBA: E Isser Harel responde: “Agora ele é nosso.”

SAMARA: Abril de 1961, Jerusalém.

DJALBA: No centro da sala do tribunal, um cubo de vidro à prova de balas. Dentro dele, um homem magro, de cabelos ralos, quase careca, sentado em silêncio. Uma aparência discreta que escondia a dimensão de seus crimes.

SAMARA: Adolf Eichmann, o arquiteto da deportação em massa. O funcionário-modelo da máquina da morte.

DJALBA: Agora exposto como nunca esteve. Agora visível para o mundo inteiro.

SAMARA: Jornais, rádios e televisões transmitem cada gesto, cada palavra, cada silêncio. Milhões de pessoas acompanham. Sobreviventes seguram o ar. Governos observam. Historiadores testemunham.

DJALBA: E, pela primeira vez desde o fim da guerra, a História entra na sala – inteira, dolorosa, inevitável. O Holocausto, antes sussurrado, agora fala em voz alta.

SAMARA: No tribunal, levanta-se Gideon Hausner, procurador-geral de Israel, advogado de voz firme, mente afiada e herdeiro moral das vítimas da Europa massacrada. Ele respira fundo e inaugura a sessão com uma frase que atravessaria décadas: “Não estou aqui sozinho. Comigo estão seis milhões de acusadores”.

DJALBA: Sobreviventes falaram. Documentos foram exibidos. A máquina da morte foi exposta à luz.

SAMARA: Entre os observadores estava Hannah Arendt, enviada pelo The New Yorker. Ela esperava um monstro.

DJALBA: Mas encontrou algo mais perturbador: um funcionário medíocre, incapaz de pensar e preso a frases feitas e clichês burocráticos.

SAMARA: Foi daí que surgiu o conceito de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal.

DJALBA: O mal cometido não por fanáticos demoníacos, mas por pessoas comuns que suspendem o pensamento moral e obedecem cegamente ao sistema.

SAMARA: O julgamento não foi breve. Ele se estendeu por oito meses.

DJALBA: Começou em 11 de abril de 1961 e só chegaria ao veredicto final em 15 de dezembro do mesmo ano. Foram mais de cem sessões, centenas de documentos analisados, dezenas de testemunhos – uma exposição meticulosa da engrenagem da morte.

SAMARA: Durante todo esse tempo, Adolf Eichmann permaneceu ali, sentado dentro da cabine de vidro, quase imóvel, repetindo a mesma defesa: “Eu apenas cumpri ordens.”

DJALBA: Mas, ao final de oito meses de julgamento, o tribunal foi categórico. Em 15 de dezembro de 1961, o Tribunal Distrital de Jerusalém anunciou sua decisão: culpado em todas as acusações.
Crimes contra o povo judeu. Crimes contra a humanidade. Crimes de guerra.

A pena: morte por enforcamento.

SAMARA: Eichmann recorreu. O pedido foi analisado pela Suprema Corte de Israel. Negado.

DJALBA: O presidente de Israel também recusou o pedido de clemência. Na noite de 31 de maio de 1962, pouco antes da meia-noite, Adolf Eichmann foi levado à forca na prisão de Ramla.

SAMARA Segundo os registros oficiais, manteve-se calmo. Recusou assistência religiosa judaica. Suas últimas palavras foram uma reafirmação de lealdade à Alemanha nazista.

DJALBA: Poucos minutos depois, estava morto.

SAMARA: O corpo foi cremado.

DJALBA: As cinzas foram lançadas ao mar Mediterrâneo, fora das águas territoriais de Israel. Uma decisão simbólica: Eichmann não teria túmulo. Não teria lugar. Não teria solo para ser lembrado.

SAMARA: O mundo não assistiu apenas à condenação de um homem. Assistiu à exposição de um sistema. De uma lógica. De uma burocracia que transformou assassinato em rotina, em ato trivial.

DJALBA: Você está em Relatos – A Estação da História.

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DJALBA: Efeitos sonoros: FreeSFX.co.uk

SAMARA: Texto e roteiro: Djalba Lima

djalba.lima@gmail.com Escrito por:

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