Podcast: Play in new window | Download
Por DJALBA LIMA (*)
Novembro de 2025 marca meio século de um dos episódios mais sombrios — e ainda insuficientemente conhecidos — da história latino-americana: a Operação Condor, a rede clandestina de perseguição internacional montada por ditaduras do Cone Sul para vigiar, capturar, torturar e eliminar opositores políticos além das fronteiras nacionais.
Historiadores e jornalistas conheciam fragmentos dessa história desde os anos 1980. Mas a combinação de arquivos latino-americanos, documentos norte-americanos desclassificados, testemunhos de vítimas e trabalho sistemático de iniciativas como o Plan Cóndor e o National Security Archive permitiu, nos últimos anos, reconstruir o funcionamento interno da máquina do terror.
E ao reconstruí-la, um fato se impõe com força: o Brasil esteve mais dentro dessa engrenagem do que o discurso oficial admitiu por décadas.
Os 50 anos de Condor são, portanto, um convite para revisitar o passado – e para retirar máscaras ainda usadas no presente.
Antes do Condor já havia o voo: o terreno fértil da “segurança nacional”
A reunião de 25 a 28 de novembro de 1975 no Chile, liderada pela Dirección de Inteligencia Nacional (Dina) de Augusto Pinochet, não surgiu do nada. Desde o fim dos anos 1960, as ditaduras do Cone Sul já se articulavam numa teia informal: troca de listas de militantes, vigilância de exilados e captura coordenada de opositores que cruzavam fronteiras.
Essa cooperação se apoiava no mesmo dogma: a Doutrina de Segurança Nacional, que definia como “inimigo interno” toda oposição real ou potencial — sindicalistas, estudantes, ativistas de direitos humanos, religiosos progressistas, professores, jornalistas.
Ainda antes da formalização da Operação Condor, essa cooperação resultou em muitos assassinatos de dissidentes políticos que cruzavam as fronteiras em busca de refúgio e segurança. Foi o caso, por exemplo, do general Carlos Prats, ex-comandante do Exército chileno que, com a queda do presidente Salvador Allende, em 13 de setembro de 1973, refugiou-se em Buenos Aires, Um ano depois, em 30 de setembro de 1974, uma bomba com alto poder explosivo, colocada por agentes da Dina no carro de Prats, matou o general e sua esposa Sofía Cuthbert.
Novembro de 1975: nasce o “Sistema Condor”
Naquele fim de novembro de 1975, em Santiago, delegações de Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai assinaram a criação de um “sistema de colaboração” de inteligência e operações clandestinas. Os documentos internos descreviam três objetivos centrais:
• Troca de informações em larga escala;
• Operações conjuntas para captura e interrogatório de opositores no exterior; e
• Formação de equipes especiais para assassinatos seletivos em território estrangeiro
O Uruguai propôs o nome: “Operação Condor”.
“Criar-se-á um sistema de colaboração permanente para neutralizar elementos subversivos que atuem além de nossas fronteiras.”
– Ata da Reunião de Santiago (1975)
Como a máquina funcionava: fronteiras deixavam de existir
A engrenagem Condor transformou a América do Sul numa zona de caça continental.
Fase 1: banco de dados comum
Listas de exilados, fichas pessoais, fotos, rotinas, endereços, vínculos familiares. O Brasil – graças ao SNI e ao CIEx – foi um dos principais fornecedores de informação.
Fase 2: operações conjuntas
Agentes de um país atuavam no território de outro. Se um chileno buscava refúgio em Buenos Aires, poderia ser sequestrado ou assassinado por agentes da Dina com apoio argentino.
Se um uruguaio vivia em Porto Alegre, poderia ser capturado com anuência policial brasileira.
Fase 3: assassinatos seletivos no exterior
A fase mais sinistra da operação.
O caso mais conhecido: Orlando Letelier, ex-chanceler de Salvador Allende, morto por um carro-bomba em Washington, em 1976 – portanto, fora da jurisdição da Condor. Foi uma ação ousada, mostrando que o terrorismo de Estado patrocinado por Pinochet e por seu braço-direito, o general Manuel Contreras, chefe da Dina, alçava voos mais altos.
Cinquenta dias antes da formalização da Operação Condor, um agente da Dina, o norte-americano Michael Townley, e o dissidente cubano Virgilio Paz Romero entraram em contato com neofascistas italianos associados a Stefano delle Chiaie e planejaram o assassinato de Bernardo Leighton, ex-vice-presidente chileno filiado à Democracia Cristã, e sua esposa Anita Fresno.
O ataque na noite de 6 de outubro de 1975 não matou o casal, mas Bernardo e Anita sofreram danos permanentes à saúde. O ex-vice-presidente foi submetido a uma cirurgia para evitar a perda da fala, mas sua função cerebral ficou irreversivelmente comprometida, e ele não conseguiu realizar o trabalho que havia idealizado: unir moderados e esquerdistas no exílio numa frente ampla contra a ditadura chilena.
Resultado
• A repressão deixou de ser nacional.
• O medo tornou-se mundial.
• O exílio deixou de ser proteção.
“O Condor permitirá a eliminação de inimigos fora do território nacional, reduzindo riscos internos e legais.”
– Documento da DINA (Chile)
Voos da morte: vítimas eram jogadas vivas no mar
Embora tenham se tornado tristemente famosos pela atuação da Força Aérea e da Marinha da Argentina, os voos da morte não eram um fenômeno isolado. Eles se encaixavam perfeitamente na filosofia operacional da Operação Condor: matar o inimigo e eliminar qualquer vestígio.
Os voos da morte seguiam uma cadeia de eventos:
• Prisão ilegal (muitas vezes em outro país, via Operação Condor);
• Transferência clandestina para centros de tortura na Argentina.
• Interrogatórios extensos e torturas.
• Finalmente, “despacho aéreo”: vítimas eram dopadas, despidas e lançadas ao Rio da Prata ou ao Atlântico, vivas, durante voos militares.
Os voos eram usados para:
• eliminar grandes grupos de presos sem deixar rastros;
• ocultar evidências de tortura;
• “higienizar” centros clandestinos para novas levas de prisioneiros.
A Argentina transformou o sistema em rotina. Estima-se que centenas, talvez milhares, tenham sido mortos dessa forma.
“Traslado especial: 12 indivíduos. Administração de Pentothal concluída. Decolagem: 23h45.”
– Registro da ESMA (Escola de Mecânica da Armada). Trata-se de uma das formas mais brutais e burocraticamente frias de descrever aquilo que ficou conhecido como os “voos da morte” durante a ditadura argentina.
As vítimas: 805 identificadas – e muitas ainda sem nome
O National Security Archive estima ao menos 805 vítimas diretas da repressão transnacional, entre sequestrados, torturados, desaparecidos e assassinados. Mas o número real é maior. Muito maior.
Militantes, estudantes, sindicalistas, religiosos, familiares de desaparecidos – muitos nunca foram oficialmente registrados como vítimas do Condor, especialmente fora da Argentina e do Chile.
O Brasil é o país que menos investigou sua participação. E, talvez por isso, o número de vítimas brasileiras e de vítimas de operações conduzidas com o Brasil segue subestimado.
A participação brasileira: do mito da “moderação” ao fato
Por décadas, sustentou-se no Brasil a narrativa de que a ditadura de 1964 teria sido “mais amena” e “menos sangrenta” que suas vizinhas. Essa autoimagem serviu para blindar militares e diplomatas – e para esconder fatos desconfortáveis.
Hoje sabemos que:
1) O Brasil aderiu à Operação Condor e forneceu tecnologia
Documentos do Cone Sul e telegramas dos EUA mostram participação ativa desde 1976. Naquele ano, o Brasil concordou em fornecer equipamentos para a “Condortel”, a rede de comunicações utilizada pelas agências de inteligência dos países envolvidos. Essa rede usava tanto voz quanto teletipo para as comunicações entre os membros.
O equipamento fornecido pelo Brasil incluía máquinas de cifra CX-52, de origem suíça, fabricadas pela empresa Crypto AG. Essas máquinas eram semelhantes a antigas caixas registradoras, com teclas, alavancas deslizantes e um disco manual operado após cada entrada.
O fornecimento desses dispositivos permitiu que os países membros da Operação Condor compartilhassem informações de forma segura e coordenassem ações de repressão contra opositores políticos.
Um aspecto intrigante dessa colaboração é que a Crypto AG era secretamente controlada pela CIA e pela agência de inteligência alemã BND. Isso significava que, ao fornecer os equipamentos de criptografia para a Condortel, o Brasil permitiu, inadvertidamente, que os Estados Unidos e a Alemanha tivessem acesso às comunicações internas da Operação Condor. Essa operação de espionagem, conhecida como “Minerva” ou “Rubicon”, permitiu que a CIA monitorasse as atividades repressivas dos regimes militares sul-americanos.
Além disso, o Serviço Nacional de Informações (SNI) era visto como o mais eficiente serviço de informações da região. Isso deu ao Brasil um papel estratégico no fluxo de dados do Condor.
“A colaboração com governos amigos deve permanecer confidencial para evitar desgaste internacional.”
– Memorando interno do Ministério da Justiça do Brasil
2) Diplomatas brasileiros colaboraram
Embaixadas e consulados brasileiros monitoraram exilados sul-americanos e repassaram informações sensíveis a serviços secretos estrangeiros.
O caso de sete pessoas com cidadania brasileira desaparecidas após captura na Argentina é o exemplo mais doloroso.
Poucos brasileiros conhecem essa história — e ela é crucial para compreender o papel do país na Condor.
Entre 1977 e 1978, sete militantes do Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), brasileiros natos e uruguaios naturalizados brasileiros, foram presos clandestinamente na Argentina. Seu destino: o mesmo de centenas de outros opositores do Cone Sul: desaparecimento forçado.
Esses nomes foram descobertos anos depois graças ao trabalho da embaixada do Brasil em Buenos Aires, que registrou internamente informações sobre os desaparecimentos — mas não alertou as famílias, nem denunciou às instâncias internacionais.
O PVP era uma organização de esquerda uruguaia que enfrentava duríssima repressão. Como muitos exilados, parte do grupo buscou refúgio na Argentina — e acabou capturado pelo esquema da Condor.
“Confirmada a detenção dos uruguaios-brasileiros. Recomendamos silêncio até orientação superior.”
– Telegrama do Itamaraty
A Comissão da Verdade classificou a conduta do governo brasileiro como “omissão dolosa que contribuiu para o desaparecimento definitivo dos cidadãos brasileiros”.
Ou seja, o Brasil sabia, não agiu e ainda ocultou informações.
Esse caso simboliza a participação ativa e a cumplicidade diplomática brasileira no sistema Condor.
3) O caso Celiberti–Díaz é Condor puro
Em 1978, em Porto Alegre, uma equipe conjunta Brasil–Uruguai sequestrou Lilian Celiberti e Universindo Díaz, cidadãos uruguaios que buscaram refúgio no Brasil na tentativa de levar uma vida longe da repressão no país vizinho. A operação teve todas as características da Fase 2 da Condor.
Foi um dos raros casos denunciados ainda na época.
4) João Goulart era alvo prioritário
O ex-presidente deposto em 1964 foi monitorado por Brasil, Uruguai e Argentina. A informação oficial é de que Jango morreu em decorrência de um infarto enquanto estava exilado na Argentina, em 6 de dezembro de 1976. Contudo, há fortes suspeitas de que a morte tenha sido causada por envenenamento como parte da Operação Condor, e essa hipótese levou à exumação de seu corpo em 2013 para investigação. Não foi possível determinar a causa da morte devido à decomposição e a outros fatores, mas a investigação prosseguiu.
Um arquivo do CIEx sobre Jango, referente ao período de 1975 a 1976, afirma que sua “atividade política permanece potencialmente desestabilizadora”. A sigla CIEx refere-se ao Centro de Informações do Exterior, um órgão de inteligência e repressão criado pelo governo brasileiro durante a ditadura militar. Tinha como finalidade vigiar, monitorar e seguir os exilados políticos brasileiros que viviam no exterior. Atuava em estreita colaboração com ditaduras do Cone Sul, no âmbito da Operação Condor.
“A coordenação repressiva entre Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil parece agora sistemática e institucionalizada.”
– Telegrama do Departamento de Estado (EUA), 1976
Os Estados Unidos: o aliado que sabia – e deixou acontecer
Os EUA acompanharam a formação da Condor desde o início. Relatórios da CIA e do Departamento de Estado mostram que Washington:
• sabia das torturas, sequestros e assassinatos;
• treinou parte dos agentes envolvidos;
• forneceu capacidade de escuta, vigilância e comunicação;
• só recuou quando o assassinato de Letelier em Washington tornou impossível manter a cumplicidade.
A doutrina era clara: derrubar o comunismo justificava tudo, inclusive transformar a América do Sul numa zona onde refugiados eram caçados como animais.
O legado e a ferida: a impunidade brasileira
Enquanto Argentina, Chile e Uruguai julgaram militares da Condor, o Brasil permaneceu preso à sua Lei de Anistia de 1979 — interpretada pelo Supremo, em 2010, como blindagem absoluta aos envolvidos com a repressão política.
A Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, em São Paulo, solicitou formalmente que o Brasil pedisse desculpas aos países vítimas da cooperação repressiva. Até agora, silêncio.
Os arquivos seguem incompletos. Muitos continuam fechados. E a memória permanece ignorada.
Por que falar de Condor hoje?
Porque o passado não passou.
A repressão transnacional — sequestrar opositores políticos no exterior, pressionar familiares, monitorar exilados — voltou a acontecer no mundo contemporâneo (Rússia, Irã, China, Arábia Saudita).
E porque setores políticos brasileiros ainda tentam:
• reescrever a história da ditadura;
• relativizar crimes de Estado;
• usar instituições para perseguir adversários.
Estudar o Condor, 50 anos depois, não é uma opção – é um dever democrático.
Condor é espelho e alerta
A Operação Condor revela o que regimes autoritários são capazes de fazer quando compartilham o mesmo inimigo.
Mostra como o exílio deixa de ser proteção quando Estados decidem que fronteiras não valem mais.
E expõe, sem anestesia, a participação brasileira — real, ativa, documentada — numa rede internacional de terrorismo de Estado.
Cinquenta anos depois, o que Condor nos diz é simples: sem verdade e sem justiça, os fantasmas da repressão continuam à espreita.
E a História mostra — sempre mostra — que fantasmas, quando não enfrentados, voltam.
(*) DJALBA LIMA é jornalista e editor de Relatos – A Estação da História
Você pode gostar também: Agente da morte: as confissões secretas de Michael Townley e Documentos secretos da CIA – o império age na sombra

Muito oportuno o relato histórico. No momento em que vivemos uma forte ameaça desses mórbidos ideais políticos. Um grande alerta para aqueles que não sabem e para os que sabem o que foi essa tragédia política. E que possam de alguma forma lutar contra esses mórbidos movimentos que nos assombram. Djalba Lima e Samara são vozes importantíssimas nesse momento histórico da América Latina.
Obrigado!
Muito bacana. Os episódios instigam a vontade de conhecer mais e desvelam a história triste de nossa América latina.
Muito bacana. Os episódios instigam a vontade de conhecer mais e desvelam a história triste de nossa América latina.
[…] morreu em 6 de dezembro de 1976, na Argentina, oficialmente de infarto.Mas vivia sob vigilância da Operação Condor, e opositores latino-americanos estavam sendo eliminados por regimes militares […]