O sequestro silencioso: como extremistas, milícias e bilionários tomaram conta da política

Como o colapso dos filtros partidários permitiu a ascensão de líderes autoritários, milícias territoriais e bilionários incontroláveis – e empurrou Brasil e Estados Unidos para perigosas derivas democráticas.

Por DJALBA LIMA (*)

A democracia raramente morre de uma vez. Mais frequentemente, vai sendo arrastada para longe de si mesma, pouco a pouco, por dentro — um processo que a ciência política chama de deriva autoritária: quando instituições continuam de pé, eleições seguem acontecendo, partidos permanecem existindo, mas seus sentidos, sua força e suas salvaguardas vão sendo corroídos.

Essa erosão lenta quase nunca é percebida no momento em que começa. Por isso é silenciosa. E por isso é tão letal.

Uma das primeiras engrenagens a falhar, quando democracias entram em deriva, é justamente aquela que deveria protegê-las: o papel dos partidos como filtros — os gatekeepers, responsáveis por barrar extremistas, demagogos, criminosos ou outsiders perigosos antes que eles ascendam ao centro do poder.

Quando esses filtros se rompem, a política deixa de ser uma arena pública e torna-se terra de invasores – extremistas ideológicos, milícias territoriais e bilionários que confundem poder público com empresa privada.

Foi exatamente isso que aconteceu no Brasil. E, antes de nós, nos Estados Unidos.

Quando os filtros funcionam: o caso esquecido de Henry Ford

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como as Democracias Morrem, recordam um episódio crucial da história americana.

Nos anos 1920, o bilionário Henry Ford, ícone industrial, admirado como gênio empreendedor, acalentou o desejo de concorrer à presidência dos Estados Unidos. Pesquisas internas mostravam que ele poderia vencer com facilidade. Mas Ford vinha carregado de antissemitismo, teorias conspiratórias e desprezo por liberdades civis.

Foi então que o Partido Republicano exerceu seu dever histórico: negou-lhe apoio, estrutura e aval.

“A máquina republicana, alarmada com o autoritarismo e o antissemitismo de Ford, simplesmente se recusou a apoiá-lo. Sem o aval dos líderes partidários, sua candidatura morreu antes de nascer.”
– Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como as Democracias Morrem,

A democracia americana foi salva por um “não”.

Quando o filtro quebra: Donald Trump e o início da deriva autoritária americana

Mas quase um século depois, o filtro ruiu. Em 2016, o Partido Republicano já não desempenhava mais sua função de guardião democrático.

Pressionados pelo ressentimento social, pela radicalização digital e pelos cálculos de curto prazo, seus dirigentes aceitaram um candidato com histórico explícito de racismo, violência retórica, ataques à imprensa, flertes com autocratas e desprezo pelas regras eleitorais.

Trump é o caso exemplar de deriva autoritária legitimada por um partido que desistiu de dizer “não”.

A normalização de sua figura abriu caminho para:

• tentativas de subverter a eleição de 2020,

• o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021,

• captura partidária por extremistas,

• erosão gradual dos freios e contrapesos.

Foi o dia em que o guardião abandonou o portão — e o invasor entrou.

O desastre brasileiro: quando os partidos perderam a fronteira moral

No Brasil, porém, o colapso dos filtros partidários ocorreu de forma ainda mais dramática. A fragmentação partidária, o fisiologismo e o uso mercantil de siglas criaram o terreno perfeito para que qualquer um, munido de dinheiro, ressentimento ou apoio territorial, pudesse chegar aos altos cargos da República.

O outsider que os partidos normalizaram: Jair Bolsonaro

Em qualquer democracia madura, declarações como:

• elogio à tortura,

• incitação à violência,

• ataques a minorias,

• apologia da ditadura,

• hostilidade às instituições

seriam motivo suficiente para a rejeição imediata de uma candidatura.

Mas não no Brasil. Aqui, partidos ofereceram legenda, tempo de TV, apoio formal e informal, financiamento, alianças e palanques.

Bolsonaro foi aceito, abraçado, elevado — e se tornou presidente com um discurso abertamente antidemocrático.

Resultado: um acelerador da deriva autoritária brasileira – corrosão institucional, produção de desinformação, violência política crescente e uma tentativa de golpe consumada em 8 de janeiro de 2023.

Rio de Janeiro: quando a política é sequestrada por milícias

A falência dos filtros partidários também permitiu o ingresso de um ator ainda mais perigoso no processo político: o crime organizado.

Nenhuma democracia sobrevive quando grupos armados passam a influenciar ou controlar eleições.

No Rio de Janeiro, o sequestro da política se deu por meios diretos:

• milícias determinam quem pode ou não fazer campanha em determinados bairros;

• controlam territórios, votos e recursos;

• financiam candidaturas;

• transformam mandatos em proteção legal e política;

• usam partidos como fachadas legais para expandir poder.

É o sequestro da política em sua forma mais literal

As microlegendas e o mercado de candidaturas

Quando as siglas se tornam meros balcões de negócios, a política deixa de ser espaço de representação para se transformar em um ecossistema de oportunismo:

• pastores transformados em celebridades políticas;

• empresários convertidos em salvadores nacionais;

influencers credenciados como líderes morais;

• criminosos travestidos de candidatos;

• extremistas impulsionados por algoritmos.

O partido, que deveria filtrar, passa a validar, certificar e abonar.

É o gatekeeping ao avesso.

E o país mergulha, silenciosamente, em sua deriva autoritária.

Derivas autoritárias: como democracias deslizam para o abismo

A deriva autoritária é um processo cumulativo. Os cientistas políticos identificam quatro sinais clássicos:

• Rejeição das regras democráticas;

• Negação da legitimidade do adversário;

• Tolerância ou promoção da violência política;

• Restrição de liberdades civis e de oposição.

Quando os partidos deixam de ser filtros, esses sinais não são mais exceções e passam a ser critérios de ascensão política.

Em vez de barrar extremistas, os partidos os promovem. Em vez de proteger a democracia, tornam-se seus vetores de erosão. Em vez de defender as regras do jogo, apostam no caos que lhes favorece.

Assim, pouco a pouco, o sistema desliza.

• Não é um golpe.
• É uma captura.
• Um sequestro silencioso.

A pergunta que define o futuro: estamos dispostos a reconstruir os filtros?

O Brasil chegou a um ponto crítico. As instituições seguem de pé, mas a confiança pública está corroída. Os partidos continuam existindo, mas perderam sua função mais importante. As eleições seguem ocorrendo, mas as forças que competem nelas são cada vez mais assimétricas e contaminadas.

A democracia brasileira não precisa apenas de reformas. Ela precisa recuperar sua capacidade de dizer “não” — não ao extremismo, não ao crime, não ao oportunismo bilionário, não às candidaturas que flertam com a violência ou rejeitam a própria ideia de pluralismo.

Pois a história ensina:

(*) DJALBA LIMA é jornalista e editor de Relatos – A Estação da História.

djalba.lima@gmail.com Escrito por:

3 Comentários

  1. Edson Luiz de Almeida
    dezembro 9, 2025
    Responder

    Excelente e oportuníssima análise! Parabéns, Djalba!

  2. Edson Luiz de Almeida
    dezembro 9, 2025
    Responder

    Mais uma oportuníssima análise! Parabéns, Djalba!

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